Ucrânia: um peão no tabuleiro geopolítico
A avaliação dos eventos que levaram à guerra na Ucrânia é complexa e frequentemente depende da perspectiva de quem a analisa. De acordo com o governo dos Estados Unidos, a guerra foi "não provocada,", com a noção de que o presidente russo, Vladimir Putin, teria invadido a Ucrânia, supostamente, com a intenção de recriar o Império Russo. No entanto, essa narrativa encontra resistência por parte de vozes críticas, como a do professor da Universidade de Columbia, Jeffrey D. Sachs.
Sachs aponta que, em um testemunho proferido perante o Parlamento da União Europeia, o Secretário-Geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, cometeu uma gafe, ao deixar bem claro que a verdadeira raiz do conflito e a razão para sua persistência se encontram no esforço contínuo dos Estados Unidos deexpandir a OTAN, materializado no interesse de tornar a Ucrânia membro da organização. Stoltenberg expõe o contexto dos eventos que levaram à guerra, como a declaração do Presidente Putin, no outono de 2021, e a subsequente apresentação de uma proposta de acordo que estabelecia o compromisso da OTAN de não incluir novos membros, incluindo explicitamente a Ucrânia, e a retirada da infraestrutura militar da OTAN dos países aliados que aderiram à organização depois de 27 de maio de 1997, o que abrangeria metade dos países da OTAN, incluindo boa parte da Europa Central e Oriental. No entanto, a OTAN rejeitou de plano essas propostas, e, como resultado, Putin optou por recorrer à guerra, para evitar a expansão contínua da OTAN em direção às suas fronteiras.
Ao longo das décadas, o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, tem buscado de forma persistente distanciar a Ucrânia da influência russa, apesar dos profundos laços históricos, culturais, econômicos e políticos entre os dois países. Essa busca incluiu o apoio à adesão da Ucrânia à OTAN e à União Europeia, ignorando as possíveis repercussões adversas em território russo. Até mesmo a equipe de Zelensky sabia que a busca pela expansão da OTAN poderia incorrer em uma guerra iminente com a Rússia. Oleksiy Arestovych, antigo conselheiro do Gabinete do Presidente da Ucrânia, declarou que “com uma probabilidade de 99,9%, o nosso preço para aderir à OTAN é uma grande guerra com a Rússia”.
Arestovych alegou também que, mesmo sem a expansão da OTAN, a Rússia eventualmente buscaria controlar a Ucrânia, ainda que isso ocorresse muitos anos depois. A história, contudo, contradiz essa afirmação. A Rússia respeitou a neutralidade da Finlândia e da Áustria por décadas, sem ameaças significativas, e muito menos invasões. Além disso, da independência da Ucrânia em 1991 até a queda do governo ucraniano, democraticamente eleito em 2014, através de uma mudança de regime apoiada pelos EUA[1] , a Rússia havia não demonstrado qualquer interesse em intervir militarmente no território ucraniano.
Foi somente após os Estados Unidos instalarem um governo fortemente anti-russo e pró-OTAN, marcado por tendências ultranacionalistas e neofascistas, acompanhadas por discriminação contra russos étnicos e a língua russa dentro da Ucrânia, que a Rússia retomou a Crimeia, devido à preocupação de que sua base naval no Mar Negro, localizada na Crimeia desde 1783, caísse sob o controle da OTAN. Importante notar que, mesmo nesse contexto, a Rússia não buscou anexar outros territórios ucranianos: seu principal interesse era na implementação do Acordo de Minsk II, respaldado pela ONU, o qual previa a autonomia da região do Donbass, habitada principalmente por povos étnicos russos, em vez de uma reivindicação territorial russa. No entanto, ao invés de buscar a diplomacia, os Estados Unidos optaram por armar, treinar e auxiliar na organização de um grande exército ucraniano, efetivamente transformando o alargamento da OTAN em uma conclusão inevitável.
A Rússia não via com bons olhos a possibilidade de bases militares da OTAN em sua fronteira de 2.300 km com a Ucrânia, na região do Mar Negro e também não apreciava a colocação de mísseis Aegis pelos EUA na Polônia e na Romênia, depois de os EUA terem abandonado unilateralmente o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM). Também é importante destacar que a Rússia se ressente do histórico dos EUA em operações de mudança de regime durante a Guerra Fria e em períodos posteriores, em países como Sérvia, Afeganistão, Geórgia, Iraque, Síria, Líbia, Venezuela e Ucrânia. Sachs argumenta que essas ações se assemelham a uma estratégia de "descolonização da Rússia", onde os Estados Unidos buscam enfraquecer a Rússia e suas esferas de influência, comparando a um cenário hipotético em que a Rússia exigiria a remoção de territórios dos Estados Unidos, como o Texas, a Califórnia e o Havaí.
Ele vê a persistente busca dos Estados Unidos pelo alargamento da OTAN como uma atitude irresponsável:enquanto os EUA se opõem à presença de bases militares estrangeiras próximas às suas fronteiras, eles, ao mesmo tempo, desconsideram as legítimas preocupações de segurança de outras nações. Para ele, a guerra liderada por Putin tem como objetivo evitar a possibilidade de um cerco estratégico da OTAN nas proximidades da Rússia.
Essa interpretação crítica das ações ocidentais encontra respaldo em eventos anteriores, mais notavelmente na crise envolvendo a Geórgia na metade da década de 2000. Naquela época, os Estados Unidos apoiaram uma "revolução colorida" na Geórgia, com o objetivo de estabelecer um governo anti-russo e pró-OTAN em Tbilisi. A OTAN também desempenhou um papel significativo ao treinar o exército georgiano e fornecer a ele as habilidades e a interoperabilidade necessárias para uma eventual adesão à OTAN. No entanto, a situação tomou um rumo trágico quando o presidente georgiano Mikheil Saakashvili optou por usar o exército georgiano recém-aperfeiçoado para tentar recuperar o controle das duas regiões separatistas da Geórgia, Ossétia do Sul e Abecásia, resultando em um conflito que causou a morte de dezenas de civis ossétios e de 19 soldados russos, que serviam como forças de paz na região. A Rússia interveio enviando suas tropas para proteger a autonomia da Ossétia do Sul, embora não tenha ocupado todo o território georgiano. Posteriormente, a Rússia reconheceu a independência tanto da Ossétia do Sul, quanto da Abecásia. A lição a ser tirada desse episódio é que o envolvimento dos EUA e da OTAN fortaleceu uma Geórgia que, equivocadamente, acreditou que o Ocidente interviria militarmente ou de outra forma para protegê-la, em caso de conflito com Moscou. No entanto, os eventos subsequentes demonstraram que essa expectativa não se concretizou da maneira que a Geórgia esperava, gerando consequências indesejadas e um resultado adverso.
A atual situação na Ucrânia apresenta notáveis paralelos com o que ocorreu na Geórgia, evidente na diminuição do suporte ocidental ao conflito, conforme demonstrado na recente conferência OTAN-Ucrânia em Rammstein, onde o Ocidente demonstrou relutância em fornecer a assistência prometida, devido a desafios econômicos, considerações políticas e aos custos que tal apoio acarretaria para as sociedades ocidentais, fazendo com que a resistência da Ucrânia ao crescente poder militar russo, embora corajosa, se mostre insuficiente. Além disso, o apoio do Ocidente não se restringe apenas a questões militares; recentemente, países da União Europeia ampliaram restrições a produtos agrícolas ucranianos, para proteger suas próprias economias (para saber mais sobre a guerra agrícola entre a Ucrânia e os membros da União Europeia, acesse esse link!).
Enquanto a possibilidade de uma "guerra longa" é debatida, isto é, um conflito prolongado até a exaustão das forças ucranianas, a pergunta crucial se torna como a Ucrânia poderá sustentar tal guerra, sem o auxílio e o compromisso total do Ocidente, tanto em termos de duração, quanto de escala. Sem esse compromisso, apoiando-a, não apenas pelo tempo necessário, mas também na medida necessária, a Ucrânia não conseguirá resistir à máquina militar russa que se aproxima rapidamente.
No entanto, Washington insiste em manter a “recompensa” da adesão da Ucrânia à OTAN, “após a vitória” na guerra. Em outras palavras, os ucranianos estão sendo solicitados a suportar um fardo ainda maior e mais torturante, para proteger os objetivos da OTAN. A cúpula OTAN-Ucrânia em Rammstein não resultou em grandes quantidades de armamentos novos para Kiev, talvez apenas o suficiente para abastecer as forças armadas da Ucrânia por cerca de apenas dois meses. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez um discurso laborioso, com pouca convicção e hesitante na sessão de abertura da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque, dedicando menos de dois, dos 25 minutos, à luta que a Ucrânia está enfrentando em nome da OTAN. As perspectivas para os ucranianos não são positivas: a economia entrou em colapso, o país enfrenta uma crise demográfica sem precedentes, e o governo depende financeira e militarmente de ajuda externa contínua para sobreviver. Até quando a Ucrânia persistirá em servir de instrumento dos interesses geopolíticos dos americanos e europeus?
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