O Processo de Desdolarização Continua
Recentemente, informes que abordam o possível término de um tratado de “petrodólares” de 50 anos entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita estão circulando pelo mundo. Tais relatórios parecem ter sido originados na Índia ou em sites obscuros voltados para investidores em criptomoedas. Embora essas notícias possam ser falsas, elas destacam um ponto crucial: o acordo, fundamental para o sucesso do dólar, está desgastado.
A origem do acordo oficial entre os países, assinado em junho de 1974, além de outro secreto que também fora assinado no mesmo ano, se deu em um contexto no qual os Estados Unidos prometiam aos sauditas ajuda militar na troca da reciclagem de seus rendimentos do petróleo em títulos do Tesouro dos EUA. Parte do acordo também consistia no compromisso saudita de somente aceitar o pagamento, pelo seu petróleo exportado, na moeda americana. O acordo pelo qual Riad venderia seu petróleo em dólares era informal e não tinha prazo de validade, assim construindo um sistema do petrodólar, que passou a crescer, em grande parte, de forma orgânica, sem um fim claramente previsto. Tal conjuntura mostra como nenhum outro acordo econômico fez tanto para garantir a preeminência americana nas últimas cinco décadas. Em essência, o sistema representava um apoio implícito do petróleo ao dólar. Porém, a falta de disposição dos EUA em manter esse apoio está condenando gradualmente o sistema.
Quando os EUA abandonaram a indexação do dólar ao ouro em 1971, pondo fim ao acordo de Bretton Woods, o sistema financeiro internacional mergulhou no caos. A desvalorização do dólar e a inflação em alta fez com que a moeda perdesse o seu preço, chegando a ter um quinto do seu valor original, em relação a outras moedas importantes ainda no Verão de 1973. No entanto, o dólar conseguiu ter o papel de moeda de reserva, sendo um instrumento de comércio que passou por crescimento. Como resultado, os EUA conseguiram orientar o comércio de petróleo para dólares, começando com os sauditas em 1974 e logo depois estendendo-se a toda a OPEP. Esse movimento deu ao dólar um novo alcance. Em troca, a Arábia Saudita tornou-se um protegido militar dos EUA, o que passou a ser visto como uma oferta irrecusável para os sauditas.
O dólar, desvinculado do ouro, encontrou no petróleo um novo tipo de suporte. Após o choque de 1973-74, o preço do petróleo se estabilizou, o que foi crucial para o sucesso do sistema do petrodólar. A única grande exceção a essa estabilidade foi o choque petrolífero de 1978-79, desencadeado pela Revolução Iraniana. Este evento coincidiu com uma crise no dólar e uma inflação violenta nos EUA, levando o presidente do FED, Paul Volcker, a adotar uma política de aumento agressivo das taxas de juros para conter a inflação.
As medidas de Volcker restauraram a confiança no dólar, tornando-o uma moeda preferida no comércio global e reforçando a percepção de que os EUA protegeriam o valor do dólar a qualquer custo. Ainda na época, Volcker chegou a ser acusado de dar prioridade ao funcionamento do sistema do dólar em detrimento das considerações internas, assim demonstrando o seu esforço de conter a pior inflação dos EUA na história, bem como mudar a desgastada credibilidade do dólar.
No entanto, tem-se que, a partir de 2003, o preço do petróleo começou a subir, devido à crescente demanda chinesa e à escassez de petróleo facilmente extraível. Durante este período, o dólar diminuiu, contribuindo para o aumento dos preços do petróleo em 50%, como relatado pelo economista Steve Hanke. Em julho de 2008, o preço do petróleo atingiu um pico de 145 dólares por barril, revelando uma fissura fatal no sistema do petrodólar. Os EUA, ao invés de fortalecerem o dólar, cortaram as taxas de juros, exacerbando o problema. Além disso, a resposta dos EUA à crise financeira de 2008-09, com resgates e flexibilização quantitativa, minou ainda mais a confiança no dólar. Para muitas nações, tornou-se evidente que os EUA não poupariam esforços para estabilizar o seu próprio sistema bancário defeituoso, prejudicando assim os importadores do recurso energético. Portanto, o sistema do petrodólar começou a desmoronar com o aumento do petróleo e esse colapso tem continuado desde então.
A China, percebendo a fraqueza do dólar, começou a adquirir ouro e reduzir a compra de títulos do Tesouro dos EUA. Sendo o maior importador mundial de petróleo, a China deixou claro o seu desejo de poder comprar petróleo utilizando a sua própria moeda, visando reduzir sua dependência do dólar a partir de contratos dinâmicos introduzidos em 2018. O intuito era comprar petróleo a partir do yuan, o que demonstra um esforço para tornar a sua moeda negociável globalmente. O conflito na Ucrânia e as sanções ocidentais aumentaram as compras de petróleo russo pela China, pagos em yuan, marcando o "anoitecer para o petrodólar e o amanhecer para o petroyuan", segundo o analista Zoltan Pozsar.
As sanções impostas à Rússia pelo ocidente, em virtude do conflito com a Ucrânia, também fizeram com que se ampliassem os esforços russos pela criação de um novo sistema de pagamentos. A ideia é a de que os pagamentos devem estar desvinculados do sistema Swift de transações, para que se reduza a dependência do dólar.
Por muito tempo, a Rússia tem buscado criar um mecanismo de pagamento destinado a liquidar transações transfronteiriças com o BRICS e outros países em desenvolvimento em uma nova moeda. Lançada em 2023, a BRICS Pay Initiative continuará a ajudar os planos para a independência do dólar nos próximos anos.
A retórica de desafiar o sistema de pagamento ocidental se tornou um importante elemento de estrutura financeira, especialmente para a aliança BRICS. Durante grande parte de 2023, a aliança econômica BRICS intensificou os esforços para reduzir sua dependência com relação ao dólar. Tanto a Rússia quanto o Irã, um dos países recém-convidados, sofreram com as sanções impostas pelo Ocidente. Outros países também estão preocupados em enfrentar ações semelhantes do Ocidente. Portanto, o bloco está tentando lidar com o estado geral do dólar em nível global.
A solução oferecida seria impulsionar o comércio em moedas locais, uma tendência acelerada pelas sanções autoritárias de Washington. A Índia, o terceiro maior importador e consumidor de petróleo do mundo, tornou-se o maior comprador de petróleo bruto russo, pagando em rúpias, dirhams e yuans. A Arábia Saudita, em janeiro de 2023, declarou sua disposição em vender petróleo em outras moedas além do dólar, sinalizando mudanças significativas no sistema econômico global. À medida que o grupo BRICS se consolida e novas estruturas financeiras e redes comerciais se unem, o sistema do petrodólar só cairá ainda mais em colapso.
O desenvolvimento e fortalecimento das relações entre os países do Sul Global, especialmente por meio de plataformas como o BRICS, podem ser considerados um dos impulsos à desdolarização. Em 2015, o BRICS criou o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), também conhecido como Banco BRICS, para navegar em um regime pós-Dólar-Wall Street e produzir facilidades para promover o desenvolvimento, em vez da austeridade. A criação dessas instituições e a procura por novos meios para pagar pelo comércio transfronteiriço criaram uma expectativa de desdolarização acelerada.
Nesse sentido, o acordo dos petrolíferos foi benéfico para os sauditas, mas eles agora parecem hesitantes em romper com os EUA. A falta de responsabilidade de Washington em manter o valor do dólar está forçando uma mudança significativa. O sistema do petróleo, profundamente enraizado, não desaparecerá da noite para o dia, mas sua base econômica está desgastada, e sua manutenção dependerá cada vez mais de propósitos e ilusões. Embora o regime Dólar-Wall Street continue significativamente poderoso, a desdolarização e as possibilidades de uma mudança na ordem global estão sendo impulsionadas pela fraqueza econômica dos EUA, pelo uso agressivo de sanções ilegais pelos EUA e seus aliados do Norte Global e pela crescente força política e econômica do Sul Global por meio de plataformas como os BRICS.
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