A Neutralidade da Áustria e a OTAN
- dri2014
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O Tratado de Estado para o Restabelecimento de uma Áustria Independente e Democrática foi assinado em Viena em 15 de maio de 1955, sendo um documento fundamental para o encerramento da ocupação das potências aliadas na Áustria e definição do Estado austríaco como soberano e neutro. O contexto sob o qual o tratado foi assinado remonta à Segunda Guerra Mundial, quando a Áustria, assim como a Alemanha, foi ocupada pelos países aliados (EUA, Reino Unido, França e União Soviética). Após o fim da guerra, a Áustria ficou dividida em zonas de ocupação e a sua capital ficou repartida entre os invasores de forma semelhante ao que ocorreu em Berlim. O tratado traz, então, importantes resoluções sobre o restabelecimento da autonomia política doméstica e internacional da Áustria.
Os principais pontos fazem referência a: (1) retomada da Áustria como país soberano e independente e democrático, em que as potências aliadas se comprometem a reconhecer e respeitar a sua independência e integridade territorial; (2) proibição do Anschluss, ou seja, proibição de qualquer união política ou econômica entre a Áustria e a Alemanha; (3) retirada das forças aliadas, que deveria acontecer em um período de noventa dias a partir da entrada em vigor do tratado e no mais tardar em 31 de dezembro de 1955; (4) compromisso da Áustria em garantir os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todas as pessoas, sem diferenciação de raça, sexo, religião ou idioma. Essas proposições representam um marco para a reconstrução do país como Estado independente, democrático e principalmente, neutro - neutralidade que foi consagrada de forma permanente na Constituição por meio de uma lei aprovada em 26 de outubro de 1955. A Lei Constitucional sobre a Neutralidade da Áustria determina, em seu Artigo 1º que “Com o objetivo de manter de forma duradoura a sua independência externa e a inviolabilidade do seu território, a Áustria declara, por sua própria vontade, a sua neutralidade perpétua. A Áustria irá manter e defender esta neutralidade com todos os meios ao seu alcance”, declarando também que não irá aderir a nenhuma aliança militar nem permitir bases militares estrangeiras em seu território.
O status de país permanentemente neutro tem sido, desde 1955, um instrumento fundamental da política externa e de segurança da Áustria, além de ser um símbolo de identidade austríaca. Apesar disso, sucessivos governos buscavam, gradualmente, enfraquecer esse status, sobretudo com a entrada do país na União Europeia, em 1995, e sua adesão à Parceria para a Paz da OTAN, participando ativamente de operações internacionais de paz, como IFOR e SFOR na Bósnia, e de outras 13 operações de paz em 1999. Diante desse cenário foi possível observar, desde o final dos anos 1980, que alguns aspectos legais e políticos substanciais dessa neutralidade foram alterados. Além disso, a Áustria também ganhou o status de membro observador da União da Europa Ocidental (UEO) - uma organização para defesa europeia, dissolvida em 2011, quando suas atividades foram transferidas para a União Europeia - levando alguns especialistas a caracterizar o país na verdade como um Estado "pós-neutro".
É possível perceber que existe uma pressão interna para abandonar a neutralidade e substituí-la pela adesão à OTAN, vinda principalmente do Partido Popular Conservador (ÖVP) e de partes dos ministérios da defesa e relações exteriores. Em artigo pra a Defense News, o jornalista e cientista político Linus Höller ilustra que a Áustria vive um impasse entre preservar sua neutralidade histórica e considerar uma eventual adesão à OTAN. A vigente chanceler do país, Beate Meinl-Reisinger, sustenta a retórica de que a neutralidade não faz-se suficiente para lograr a segurança do país, sobretudo em um contexto europeu progressivamente militarizado em decorrência da guerra na Ucrânia.
Entretanto, ainda persiste um amplo apoio popular pela continuidade do status de neutralidade, apesar das mudanças e debates. Uma maioria significativa da população austríaca continua a apoiar a neutralidade, aliada à uma forte oposição à adesão à OTAN, sobretudo diante das obrigações de defesa coletiva previstas no Artigo V, bem como das responsabilidades associadas, como o envio de tropas, a realização de exercícios regulares e o aumento substancial dos gastos com defesa. A questão é que o conceito de neutralidade está mudando e deve se ajustar aos novos desafios, demonstrando uma capacidade de adaptação contínua.
Dmitry Medvedev, Vice-Presidente do Conselho de Segurança da Federação Russa e ex-presidente do país, discorreu, em artigo publicado no Russia Today, a respeito das medidas de alinhamento militar e “pós-neutralidade” por parte do governo austríaco nos últimos anos. O político russo rememora os fundamentos constitutivos do Estado austríaco contemporâneo enquanto ator neutro da diplomacia internacional europeia. Medvedev indica implicações sancionatórias que uma militarização e aderência ao pacto militar da OTAN acarretaria a Viena, notadamente frisando que tais decisões transcenderiam um mero rechaço jurídico e diplomático - suscitando “represálias diretas” do Kremlin em relação ao país.
O emérito presidente redige uma extensa advertência ao governo de Viena mediante o cenário de possível desmantelamento da política de neutralidade, baseando-se em critérios jurídico, diplomático e militar. Do ponto de vista jurídico-histórico, a neutralidade austríaca deriva do Tratado de Estado de 1955, incorporado à Constituição, de modo que sua revogação exigiria o consentimento dos signatários originais, incluindo a Rússia. No campo diplomático, Medvedev destaca que a neutralidade fez de Viena um centro global de mediação internacional, suscitando que sua perda de neutralidade poderia acarretar a migração organismos internacionais sediados no pais. O último argumento, de caráter estratégico-militar, denuncia a “erosão prática” dessa neutralidade por meio da participação austríaca em programas da OTAN e do uso de seu território para o trânsito de 3.000 comboios e 5.000 voos militares, constatando que tais medidas progressivamente passam a serem interpretadas pelo Kremlin como a formalização de um alinhamento já em curso.
O caráter advertente do texto de Medvedev deve ser lido como uma dissuasão retórica e argumentativa em prol da reestruturação do arcabouço institucional de segurança europeia. Ao insistir na legalidade da neutralidade e no direito de veto herdado da URSS, Moscou almeja associar discursivamente a adesão austríaca à sua perda de seu prestígio diplomático, numa investida retórica que induz à percepção da comunidade internacional de que a neutralidade deve ser preservada. A menção a “medidas retaliatórias” acaba, entretanto, por enfraquecer o caráter estritamente discursivo do apelo de Medvedev pela manutenção da neutralidade enquanto práxis do Direito Internacional, à medida que implica um caráter implicitamente coercitivo em seu posicionamento.
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