O Desafio Financeiro dos EUA
Os Estados Unidos têm enfrentado, atualmente, crescentes desafios relacionados à sua dívida pública, caracterizada pela acumulação significativa de dívida pelo país ao longo do tempo. Esse problema é acarretado pelos déficits orçamentários sucessivos, que ocorrem quando os gastos governamentais excedem a receita arrecadada durante o ano fiscal. O aumento exponencial da dívida é diretamente influenciado pelos pagamentos de juros, que abrangem tanto a dívida pública (detida por indivíduos, instituições e governos estrangeiros, através de títulos do Tesouro), quanto a dívida intra-governamental (mantida por fundos fiduciários do governo).
Para uma compreensão mais clara, é importante explicar o processo associado à dívida americana. Inicialmente, ocorre a emissão da dívida, quando o governo toma empréstimos, ao emitir títulos do Tesouro para investidores, comprometendo-se a reembolsar o montante com juros em uma data determinada. Assim, periodicamente, o governo efetua pagamentos de juros aos detentores desses títulos, compensando-os pelo empréstimo. Esse processo impacta diretamente o orçamento, pois os pagamentos de juros representam uma parcela significativa dos gastos federais e o aumento desses pagamentos pode sobrecarregar o orçamento, reduzindo os recursos disponíveis para outras despesas essenciais. Além disso, as dimensões dessa situação são moldadas pela taxa de juros americana, a qual determina a magnitude do crescimento da dívida. Assim, a gestão eficaz dos pagamentos de juros é crucial para a saúde fiscal do país, especialmente considerando a especulação no mercado internacional e a possível diminuição do interesse de investidores estrangeiros.
Em 2023, os pagamentos de juros da dívida dos Estados Unidos superaram a marca impressionante de um trilhão de dólares! Esse cálculo é feito ao multiplicar a taxa de juros média da dívida negociável do Tesouro (registrada até 31 de outubro em 3,096%) pelos US$26,003 trilhões em dívida negociável dos EUA, totalizando US$805 bilhões. Adicionalmente, são incorporados os juros da dívida não negociável (registrados até 31 de outubro em 2,884%), multiplicados pelo montante de dívida não negociável, que alcançava US$7,696 trilhões, resultando em um adicional de US$222 bilhões em juros. Somando esses componentes, o montante global atinge a cifra notável de 1,027 trilhão de dólares.
O aumento, tanto nas taxas de juros quanto nos gastos com juros nos últimos dois anos, resultou na duplicação do total de juros dos EUA, desde abril de 2022, mesmo considerando o atraso inerente na adaptação dos juros - como lembrete, a grande maioria da dívida comprazo de maturação de 5, 7, 10 e 30 anos ainda está vinculada a taxas muito mais baixas. Como resultado, as taxas continuarão a subir, à medida que toda a dívida existente for renovada para taxas mais elevadas nos próximos anos. Considerando isso, o surpreendente aumento confirma que o governo americano continuará enfrentando uma conta de juros em escalada. Ademais, a campanha agressiva de aumento das taxas do Federal Reserve (equivalente do Banco Central) elevou os custos de crédito para mutuário em toda a economia, inclusive para o governo dos Estados Unidos. Custos mais altos de empréstimos significam que o governo paga mais em juros sobre sua dívida. Assim, os crescentes pagamentos de juros da dívida dos EUA criam um círculo vicioso: para atrair novos mutuários, os rendimentos dos títulos do Tesouro precisam subir para melhorar a oferta, e rendimentos mais altos agravam os já altos custos de empréstimos sobre uma dívida total, que agora ultrapassa US$33 trilhões. Essa conjuntura prejudica os títulos do Tesouro, os quais sofreram um colapso histórico nos últimos anos.
Se a dívida americana não for controlada ao longo das próximas décadas, o colapso desse sistema pode ser inevitável, de acordo com um modelo orçamentário da Penn Wharton. Essa situação está impactando os mercados financeiros e diminuindo o interesse de governos estrangeiros em adquirir os títulos da dívida norte-americana, o que dificulta o financiamento dessa dívida.
Inicialmente, os mercados financeiros esperavam que essa fosse apenas uma fase curta de aumento das taxas de juros. Em março de 2022, a taxa de juros de longo prazo dos EUA caiu abaixo do rendimento de curto prazo, tornando a curva de rendimento “invertida”, numa clara indicação de que os investidores esperavam cortes nas taxas de juros a curto prazo mais cedo do que tarde. No entanto, desde julho de 2023, as taxas de juros de longo prazo têm aumentado de forma acentuada e ininterrupta. Algo muito fundamental presumivelmente aconteceu: os investidores não estão mais dispostos a deter a dívida do governo dos EUA a rendimentos ultra baixos como antes.
Essa mudança de perspectiva pode ter ocorrido por diversos fatores, entre eles a consciência dos investidores, a respeito do enorme problema da dívida no país, algo que foi ignorado por muito tempo. Os EUA estão sentados em uma montanha de dívida superior a US$33 trilhões, como já apontado anteriormente, o equivalente a cerca de 123% de seu Produto Interno Bruto (PIB). Além disso, até o final da década, essa dívida poderá atingir US$50 trilhões. Diante disso, os antigos compradores de dívida dos EUA, como Japão, China, Brasil, Rússia e Arábia Saudita, viram seu interesse em investir no país ser reduzido. A administração dos EUA também dissipou a confiança dos investidores, ao congelar as reservas estrangeiras da Rússia no início de 2020, deixando claro para muitos investidores de países não ocidentais que os investimentos nos EUA carregam um risco político para eles. Portanto, qualquer pessoa que detenha dólares americanos ou invista em títulos de dívida dos EUA exige uma taxa de juros mais alta, na intenção de compensar os riscos do investimento.
Não são apenas os EUA que sentem os efeitos desse choque de juros: o resto do mundo também não vem sendo poupado. Os custos de crédito mais altos tornarão a vida difícil ou até inacessível para muitos devedores: consumidores e produtores. O resultado será uma desaceleração, ou até uma recessão econômica, visto que os calotes em empréstimos estão aumentando novamente e provavelmente reduzirão o mercado de crédito. O fluxo de novos créditos e dinheiro para o sistema diminuirá, e a demanda por bens será afetada negativamente, situação problemática para muitos países altamente endividados.
As montanhas de dívidas que acumularam e continuam a aumentar são o resultado de um esquema de Ponzi, nomeado após seu “inventor” Charles Ponzi, provavelmente o maior fraudador de sua época. O esquema de Ponzi estatal funciona assim: os Estados se endividam, e quando a dívida vence anos depois, os Estados a pagam assumindo novas dívidas — aumentando a carga de dívida existente. Os investidores compram os títulos do governo porque assumem que haverá investidores no futuro que comprarão os novos títulos do governo emitidos. Por sua vez, esses investidores futuros presumem que, em um futuro ainda mais remoto, também haverá investidores que comprarão a nova dívida que será emitida na época, e assim por diante.
As taxas de juros caíram ao longo das últimas quatro décadas, e o jogo fraudulento funcionou muito bem para os Estados e para os grupos de interesse que buscam usar esse jogo para seus próprios propósitos. Os Estados puderam acumular facilmente mais e mais dívidas, e a dívida que venceu pôde ser refinanciada com empréstimos a taxas de juros cada vez mais baixas. Agora, no entanto, a situação mudou drasticamente. As taxas de juros estão subindo enquanto a dívida já está muito alta.
Os investidores têm que temer uma deterioração na sustentabilidade da dívida de muitos países, especialmente porque a probabilidade de qualquer país abandonar seus gastos acumuladores de dívida é bastante baixa. Assim, a expectativa de que haverá investidores dispostos a subscrever novos títulos emitidos a taxas relativamente baixas será frustrada no futuro. Então, não demorará muito para que os investidores comecem a se preocupar e entrar em pânico, já que compreendem que o aumento previsível nos pagamentos de juros relacionados à dívida prejudicará as finanças de muitos paises. A verdade é que não há uma saída fácil de um esquema de Ponzi – pelo menos nenhuma que não desmistifique a dívida nacional e todas as mentiras e enganos que a acompanham.
Um fim iminente para o aumento das taxas de juros é bastante provável. Afinal, a inflação medida oficialmente já está caindo notavelmente, e os bancos estão freando os empréstimos. A oferta de dinheiro nas principais economias já está encolhendo como resultado dos aumentos nas taxas de juros dos bancos centrais, e as consequências desse encolhimento afetarão a atividade econômica. Uma vez que a economia se contrai e o desemprego em massa aumenta, é muito provável que os aumentos nas taxas de juros sejam revertidos em breve.
Além disso, também deve ser lembrado que o poderoso “sistema de dinheiro fiduciário”, a conluio de Estados, bancos, grandes investidores institucionais e grandes empresas, não será tão fácil de ser perturbado. Se o aumento das taxas de juros se tornar muito forte do ponto de vista político, podemos esperar mais uma incursão no saco de truques. Bancos centrais, por exemplo, começarão a comprar títulos do governo novamente, fixando assim as taxas de juros de longo prazo e curto prazo em níveis “razoáveis”. Todos esses truques de política monetária basicamente se resumem a uma coisa: pagar as faturas pendentes com dinheiro recém-criado, ou, em outras palavras, uma política inflacionária.
Essa é a grande lição que pode ser extraída do choque de juros resultante do esquema de Ponzi nos mercados de dívida: o declínio sistemático do poder de compra do dinheiro, mesmo que um alívio a curto prazo seja concedido, é quase certo.
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