O Cerco Estratégico
A expansão da influência da República Popular da China é um fato consumado no atual sistema internacional. Com investimentos tangíveis e intangíveis em quase todos os continentes - em especial na África -, a iniciativa “One Belt, One Road” (Nova Rota da Seta) pode ser considerada o principal instrumento pelo qual a China tenta consolidar sua influência a curto, médio e longo prazo na região em que se situa e ao redor do mundo. Por esse projeto, a China investe em infraestrutura para a exploração e transporte de recursos naturais e portos que precisa, e, ao mesmo tempo, amarra politica e financeiramente o país investido na armadilha do débito.
Entretanto, outras potências também tentam projetar sua influência para impedir que seus interesses sejam afetados pelos empreendimentos do governo chinês, e recentemente, União Europeia (UE) e Estados Unidos da América (EUA) confirmaram que não ficarao atrás, apresentando iniciativas de infraestrutura para contrapor-se a China e reafirmar seu poder. Nesta quarta-feira (15 de setembro), em seu discurso anual, a presidente da Comissão Europeia mostrou que a UE não pretende ficar atrás do país chinês e lançou um importante plano de investimento: a estratégia “Global Gateway” (“Portão Global”, traduzido ao pé da letra). A ação da União não foi algo criado simplesmente durante poucos dias, mas foi gestado na esteira das respostas de outros países à projeção chinesa, como os projetos “Corredor do Crescimento da África-Ásia”, feito entre Japão e Índia em 2017, e “The Blue Dot Network” entre EUA, Japão e Austrália em 2019, e após os primeiros-ministros dos países membros da UE terem pedido à Comissão um projeto que promovesse os valores europeus e protegesse os interesses da União Europeia.
O projeto de infraestrutura europeu é uma resposta direta à Nova Rota da Seda colocada em prática pelo governo de Xi Jinping, visto que em seu discurso, a Presidente ressaltou que “queremos [a UE] criar vínculos, e não dependência [...] e transformar o Portão Global em algo confiável”, como bem mostra o EUobserver. A fala é uma dura represália tácita às diversas críticas que o projeto chinês recebe, acusado de não só realizar, de acordo com pesquisadores indianos, uma "diplomacia do débito” - ou seja, investir maciçamente em projetos localizados em áreas estratégicas, a ponto do país que recebe o investimento não conseguir pagar a dívida e ter que passar as ações do empreendimento para o governo chinês -, mas também realizar trabalhos com mão-de-obra compulsória proveniente da região chinesa de Xinjiang. Xi Jinping alega que há apenas centros de “reeducação” nesta região, mas os países do Ocidente acreditam que se usa métodos de trabalho análogos à escravidão e de cerceamento de liberdades. Outro fato é a importância a ser dada ao “Portão Global” no próximo encontro entre a UE e países africanos, com a Presidente ratificando que mais investimentos europeus serão enviados para os países daquele continente a fim de “criar um mercado de hidrogênio verde que conecte as duas margens do Mediterrâneo”, aponta o EUobserver.
Logo, o projeto europeu terá investimentos públicos e privados e contará com uma ênfase no setor empresarial do mercado privado. Membros dos partidos políticos da União Europeia observam o foco nesse setor como um importante meio de fazer frente aos imensos investimentos chineses, seguindo a predominância financeira nas atuais estratégias de infraestrutura, embora essa predominância seja mais um desafio a ser enfrentado, visto que às empresas privadas interessam apenas o lucro.
Por sua vez, na área de segurança, os EUA já deixam claro os rumos da sua política externa focada no Indo-Pacífico, em detrimento do Oriente Médio. Informações da agência Anadolu afirmam que EUA e Iraque concordaram em diminuir o contingente americano em duas bases militares no Iraque até o fim de setembro, decisão que se segue à retirada dos Estados Unidos e da OTAN do Afeganistão. A mudança de foco não é por acaso. A República Popular da China é cada vez mais uma preocupação estratégica para os EUA e seus aliados, em um cenário que se desenha no que muitos chamam de uma Nova Guerra Fria. Recentemente, devido à corrente pandemia da Covid-19, o gigante asiático impôs sanções à Austrália após esta ter apoiado uma investigação independente acerca das origens do vírus. Relações diplomáticas podem ser mais sensíveis do que parecem, e em momento algum a China pareceu disposta a aceitar qualquer tipo de suspeita quanto à sua responsabilidade na pandemia. Sua postura assertiva - vista por muitos como beligerante, especialmente no Mar da China Meridional - contribui para que os adversários a vejam como uma ameaça, o que, claro, leva à formação de novas alianças e contribui significativamente para as preocupações australianas.
No dia 15 de setembro foi anunciado um novo acordo de segurança entre Austrália, Reino Unido e EUA (AUKUS - acrônimo das iniciais em inglês), que muito incomodou os chineses. O acordo permitirá que os australianos tenham acesso a submarinos de propulsão nuclear (SSN), que são mais rápidos, mais silenciosos e podem permanecer submersos por mais tempo do que os convencionais. Com o novo acordo, a Austrália será o sétimo país a possuir submarinos nucleares, mas, diferente dos outros, não possui armas nucleares. Vale destacar que esse tipo de navio submerso não carrega armas nucleares, somente os SSBN o fazem. Anteriormente, os EUA só haviam compartilhado essa tecnologia com o Reino Unido, país este que, após o Brexit, possui mais liberdade para participar em acordos de cooperação militar.
Embora não tenha sido diretamente mencionada, não é difícil deduzir que AUKUS é uma resposta à crescente assertividade chinesa. Essa iniciativa se coloca ao lado de uma outra coligação estratégica na área da segurança, o grupo QUAD, que envolve os EUA, Japão, Índia e Austrália. Seus representantes tiveram há poucos dias atrás um encontro na Casa Branca. Assim como seu predecessor, Biden busca conter o avanço daquela que já é a segunda maior economia do mundo e, vale lembrar, a maior marinha.
Ciente do cerco estratégico, a embaixada chinesa declarou que países “não devem construir blocos de exclusão visando ou prejudicando os interesses de terceiros. Em particular, eles devem se livrar de sua mentalidade de Guerra Fria e preconceito ideológico”. O jornal chinês Global Times, considerado o porta-voz do Partido Comunista, noticiou que a Austrália poderia passar a ser alvo de um ataque nuclear chinês, em caso de guerra nuclear contra os EUA (pois, segundo fontes das forcas armadas consultadas pelo jornal, os americanos poderiam equipar os submarinos nucleares australianos com misseis nucleares).
Todavia, a China não foi o único país incomodado. A França, que já vinha negociando um acordo, cujo valor alcançava aproximadamente 50 bilhões de dólares, com a Austrália para vender submarinos convencionais, também foi pega de surpresa, o que pode prejudicar as negociações do acordo de livre comércio entre UE e Austrália, que ocorrem desde 2018. Para o governo francês, que percebe seus interesses na região do Indo-pacífico como negligenciados, o anúncio da AUKUS mostra uma quebra de confiança, por isso ameaça parar as negociações do acordo de livre comércio. Contrariado, o país cancelou um evento de gala em Washington em comemoração aos 240 anos das relações franco-americanas. A França é um dos incentivadores de uma política de securitização mais robusta na União Europeia, contudo ficou de fora do acordo. Já na região, AUKUS tende a ser visto com bons olhos pelos países asiáticos, dada a postura chinesa dos últimos anos, ainda que haja receios de novas provocações que poderiam prejudicar a paz na região.
Vê-se que, os Estados Unidos e aliados não ficarão parados no tempo enquanto a China aumenta sua influência no sistema internacional, e do mesmo modo, procuram promover seus interesses e impedir que objetivos chineses possam vir a eclipsá-los. Este jogo de balança de poder e contenção estratégica mostra, mais uma vez, que a Realpolitik não perdeu sua relevância. De igual forma, este não é somente um momento de balança de poder, uma vez que a China é a principal parceira comercial de 100 países, inclusive EUA e Austrália, e, embora deseje controlar seu avanço, devido às cadeias globais de valor, nem os EUA nem seus aliados podem simplesmente descartá-la.
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