O Acordo Estratégico entre Rússia e Coreia do Norte
Em junho de 2024, a Rússia e a Coreia do Norte firmaram um acordo de parceria estratégica abrangente, assinado pelo presidente russo Vladimir Putin e pelo líder norte-coreano Kim Jong Un. De acordo com o assessor presidencial russo Yury Ushakov, o novo documento substitui o tratado de amizade e assistência mútua de 1961, o tratado de relações bilaterais de 2000 e as Declarações de Moscou e Pyongyang de 2000 e 2001. Esse novo acordo é necessário para atender à nova conjuntura resultante de mudanças profundas na situação geopolítica regional e global, bem como nas relações bilaterais entre os dois países. Ushakov destacou que o tratado seguirá todos os princípios fundamentais do direito internacional, não sendo confrontacional ou direcionado contra qualquer país, visando garantir maior estabilidade no nordeste asiático.
Na mesma semana da assinatura, a Agência Central de Notícias da Coreia divulgou o texto do documento, cujas principais disposições incluem: assistência mútua imediata em caso de agressão contra qualquer um dos países; medidas coordenadas para remover ameaças de agressão; comprometimento em não firmar acordos com terceiros países que possam ameaçar sua soberania e segurança; incremento do comércio bilateral e criação de condições favoráveis para a cooperação econômica; desenvolvimento da cooperação na exploração espacial, e uso pacífico de energia nuclear, inteligência artificial e tecnologia da informação; intensificação da cooperação na mídia para combater a desinformação; e criação de um sistema de medidas para fortalecer o potencial de defesa para prevenir a guerra e garantir a paz.
Comparado com os acordos anteriores entre Moscou e Pyongyang, este representa um grande avanço. O uso do termo “parceria estratégica abrangente” implica o mais alto nível possível de cooperação entre os países. Segundo os dois países, o fortalecimento dessas relações bilaterais sinaliza o início de uma nova ordem mundial baseada na justiça, contrapondo-se ao modelo americano baseado em regras por ele formuladas e desrespeitadas. Este movimento é significativo, pois configura uma profecia autorrealizável. O “triângulo ocidental” composto por Washington-Tóquio-Seul está evoluindo para o equivalente asiático da OTAN, justificando suas ações com uma ameaça hipotética de Pyongyang e Moscou. Isso, por sua vez, leva ao aumento da cooperação entre o “triângulo oriental” formado por Moscou-Pequim-Pyongyang, e os laços estreitos que o Ocidente teme podem realmente se tornar realidade.
No entanto, a Rússia ainda está tomando decisões cuidadosas. Apesar das expectativas do Ocidente de que Putin retirasse imediatamente as sanções impostas à Coreia do Norte pelo Conselho de Segurança da ONU, isso ainda não teria acontecido. O presidente russo enfatizou a importância da cooperação em educação, saúde e ciência, deixando claro que as sanções devem ser ajustadas e que as partes buscarão maneiras de fazer isso. Todavia, isso implica reinterpretar e contornar as sanções, em vez de violá-las abertamente. Até agora, Moscou defende uma “interpretação criativa” das sanções – “se algo não é proibido, significa que é permitido” – mas a Rússia tende a cumprir as condições que uma vez votou a favor. O Artigo 16 do tratado, que critica as “medidas coercitivas unilaterais”, pode ser visto como um desejo de mudar o regime de sanções ou buscar maneiras de contorná-lo, mas nenhuma atitude concreta foi tomada nesse sentido.
Essas novas direções de cooperação também incluem os campos de ciência, cultura e saúde, uma vez que a Coreia do Norte necessita de pessoal qualificado. Um grande destaque tem sido dado aos intercâmbios de estudantes entre os países. Outro projeto importante é a construção de uma ponte rodoviária entre a Coreia do Norte e a Rússia. Há muito tempo se fala em construir uma infraestrutura desse nível, e finalmente a decisão correspondente foi tomada. Essa ponte tornará todos os tipos de intercâmbio entre os dois países muito mais eficientes.
Com a cooperação entre Rússia e Coreia do Norte crescendo, a posição da Coreia do Sul está se tornando cada vez mais importante, visto que sua liderança será pressionada a cooperar mais estreitamente com os EUA e a OTAN e a mudar sua política em relação à Ucrânia. Atualmente, apesar da solidariedade geral com os EUA em relação à Rússia, a Coreia do Sul está tentando manter algum espaço para manobrar. Agora, será mais difícil para ela fazer isso, pois Washington está tentando convencê-la de que, se a Rússia está ajudando a Coreia do Norte e vice-versa, a Coreia do Sul deve ajudar a Ucrânia. Em tal situação, é cada vez mais provável que a Coreia do Sul mude sua posição e que haja uma deterioração acentuada de suas relações com a Rússia. Ela pode perder seu status de “mais amigável entre os países hostis” em relação à Rússia; no entanto, provavelmente tentará resistir à pressão ocidental.
Diante disso, Seul e Moscou têm trocado avisos publicamente, cada uma alertando a outra para não cruzar uma linha vermelha. O conselheiro de segurança nacional da Coreia do Sul, Chang Ho-jin, emitiu outro aviso contundente no domingo, esclarecendo que a Coreia do Sul não terá mais “limites” a manter se a Rússia fornecer “armas de alta precisão” à Coreia do Norte. Durante uma entrevista à KBS, Chang também destacou: “A composição do nosso apoio de armas à Ucrânia pode mudar dependendo de como a Rússia responder no futuro”. “Gerenciar as relações Coreia do Sul-Rússia não é algo que possamos fazer sozinhos. A Rússia também precisa fazer esforços correspondentes”, enfatizou Chang. “Se a Rússia quer restaurar e desenvolver as relações entre Coreia do Sul e Rússia após a guerra [na Ucrânia], gostaria de enfatizar mais uma vez que ela precisa considerar cuidadosamente suas ações”.
O aviso de Chang veio poucos dias depois de ele ter anunciado na quinta-feira que a Coreia do Sul “planeja reconsiderar sua posição sobre o apoio de armas à Ucrânia” em resposta à assinatura do Tratado de Parceria Estratégica Abrangente por Kim e Putin. Seu comentário sugeriu uma potencial mudança na política de longa data de Seul de se abster de fornecer ajuda letal direta a Kiev. Embora possa estar fazendo isso indiretamente. O governo sul-coreano também emitiu uma declaração para expressar “grave preocupação e condenação” acerca da assinatura do tratado que “visa fortalecer a cooperação militar e econômica mútua” horas depois de a Coreia do Norte ter divulgado unilateralmente o teor completo de seu tratado com a Rússia.
A controvérsia gira principalmente em torno da cláusula 4 do tratado, que estipula que a Coreia do Norte e a Rússia deverão fornecer “assistência mútua imediata em caso de agressão contra qualquer um dos países”. Patricia Kim, pesquisadora do Brookings Institution em Washington, destacou as implicações de segurança do tratado, observando que a linguagem deliberadamente ambígua do tratado visa instilar cautela nos EUA e seus aliados. “Uma preocupação grave é que, com uma 'garantia de segurança' russa ou pelo menos a fachada de uma em mãos, a Coreia do Norte pode se sentir encorajada a intensificar suas provocações, baseando-se no cálculo de que os Estados Unidos e seus aliados responderão com maior cautela agora que precisam levar em conta uma potencial reação russa”, disse Kim em comentário.
Já a reação da China à visita de Putin à Coreia do Norte foi bastante contida – Pequim simplesmente observou que este foi um evento importante e sério. O Global Times escreveu que essa cooperação pode assustar os EUA, e o Ministério das Relações Exteriores da China chamou o desejo da Coreia do Norte de desenvolver relações com a Rússia de “normal”, o que é uma avaliação bastante neutra.
No entanto, essa situação tem sido alvo de especulações no Ocidente, centradas na ideia de que a China estaria extremamente descontente com a aproximação entre a Rússia e a Coreia do Norte, chegando a pressionar ambos os lados para que não assinassem o tratado. O Ocidente se convenceu de que Putin visitou a Coreia do Norte e o Vietnã não porque esses países fazem parte do campo socialista, mas porque têm relações tensas com a China. Em vez disso, devemos nos ater a fatos concretos e evitar especulações. A China tem um acordo com a Coreia do Norte que data de 1961 e que também garante assistência militar. Mas em 2017-2018, antes do aquecimento das relações que aconteceu durante as Olimpíadas, analistas chineses notaram que, se um conflito coreano fosse iniciado pelo Norte, a China se limitaria ao apoio diplomático, mas se fosse o Sul que atacasse, então Pequim se lembraria do sangue uma vez derramado por seus combatentes voluntários na guerra da Coreia de 1950-53 e interviria. Não se sabe ao certo se a situação mudou agora, mas talvez a melhor avaliação do cenário seja realmente a consolidação do eixo aliado que comporta Rússia, China e Coreia do Norte na Asia do Leste.
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