Guerra no Cáucaso
A origem da disputa entre Armênia e Azerbaijão, ex-repúblicas da União Soviética, pela região de Nagorno-Karabakh, ao sul do Cáucaso, data da época em que os soviéticos atribuíram o controle da área ao governo azerbaijano, mesmo com a população sendo majoritariamente armênia. Durante anos, a extensão montanhosa foi foco de conflitos étnicos entre Yerevan, de maioria cristã, e Baku, predominantemente mulçumano. Apenas no início da década de 90, quando o Império Soviético entrou em colapso e o parlamento regional havia votado para tornar-se parte da Armênia, as tensões tomaram a forma de uma guerra em grande escala, ocasionando mortes e deixando mais de 1 milhão de desabrigados. Em 1994, a Rússia mediou um cessar-fogo, e, desde então, o território tem permanecido parte do Azerbaijão, mas com uma administração regulada pela república autodeclarada separatista, apoiada pelo governo armênio. O acordo também estabeleceu uma Linha de Contato, separando as forças dos dois países, mas não conseguiu encerrar a contorvérsia.
Em abril de 2016, uma ofensiva por parte do Azerbaijão, que resultou na morte de soldados de ambos os lados, sinalizou a retomada do confronto mesmo após a interrupção das hostilidades em 1994. Já em 2019, o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, ainda que tenha declarado estar aberto a uma solução negociada, deixou claro seu desejo de integrar o território de Nagorno-Karabakh à Armênia. Porta-voz da revolução popular que o levou ao poder em 2018, Pashinyan destituiu o líder autocrático pró-russo de longa data, Serzh Sargsyan, do governo armênio.
Os combates mais recentes, no dia 27 de setembro em diante, contaram com disparos de ambos os lados: barragens de artilharia, forças de infantaria e posicionamento de blindados ao longo da Linha de Contato. No Azerbaijão, o descontentamento popular com o governo autocrático de Ilham Aliyev e a desaceleração econômica no país tornaram atrativo a criação de uma crise que desvie a atenção do público dos problemas internos e mobilizem a população em torno do governo. Durante esse confronto, as operações ofensivas restringiram-se entre o Azerbaijão e os distritos de Fizuli e Jabrayil, ocupados pela Armênia. Possivelmente, tal embate ainda provocará fluxos significativos de refugiados.
O conflito tem possibilidade de se agravar devido ao fato da Armênia e do Azerbaijão parecerem estar se preparando para um conflito mais longo e receberem apoio de, respectivamente, Rússia e Turquia. Cabe citar que, em 2002, foi fundada oficialmente a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), uma aliança militar intergovernamental, que, dentre outros Estados da região, engloba a Rússia e a Armênia, e tem como um dos princípios norteadores a visão de que qualquer agressão contra um dos membros deve ser vista como uma agressão contra todos. Por sua vez, o Azerbaijão e a Turquia também possuem um acordo de segurança mútua assinado em 2010, o Acordo de Parceria Estratégica e Apoio Mútuo, que determina que, sob os termos do tratado, eles se apoiarão "usando todas as possibilidades" no caso de um ataque militar ou agressão contra qualquer um dos países.
Armênia e Rússia integram a mesma civilização cristão ortodoxa, ao passo que Turquia e Azerbaijão são países muçulmanos e partes da civilização islâmica. Como diria o autor Samuel Huntington, conflitos dessa natureza são os mais perigosos. Turquia e Rússia estão em lados opostos também na Síria e na Líbia, assim como no conflito entre Turquia e Grécia. A Turquia está intervindo, hoje, na Síria, no Iraque, na Líbia e no Mediterrâneo do Leste. O Cáucaso é apenas mais uma área sobre a qual a Turquia pretende estender sua influência. Como respeito ao Azerbaijão, a Turquia está vendendo uma ampla gama de armas ao Azerbaijão, incluindo VANTs, mísseis e equipamentos de guerra eletrônica; implantando tecnologia de drones militares turcos de ponta; prestando apoio político e diplomático a seu aliado; aprovando uma resolução condenando ações armênias; e, o mais grave, despachando mercenários sírios para lutar ao lado de Azerbaijão.
Em contrapartida, a Rússia mantém um comportamento mais ambíguo, e apesar de se aliar e prover garantias de segurança à Armênia através de laços bilaterais e da OTSC, estas não se estendem à zona de combate em Nagorno-Karabakh, pois ela é internacionalmente reconhecida como parte do Azerbaijão. Moscou não possui a intenção de ter que escolher explicitamente um lado, circunstância inevitável, caso houvesse um conflito mais amplo. Por outro lado, a Armênia possui ressalvas quanto à interferência russa mesmo que seja em seu favor, uma vez que teria como pressuposto algum tipo de retribuição. Dessa forma, por meio da aparente neutralidade, a Rússia sustenta relações com os dois países e fornece armas a ambos os lados no conflito, além de servir como mediadora no Grupo de Minsk.
O “Corredor de Gás do Sul” - localizado no Azerbaijão - custou US$ 40 bilhões e tem o apoio da Comissão Europeia para reduzir a dependência da Europa da energia russa. Ele ficará pronto ainda no fim deste ano, colocando mais pressão nas relações entre Rússia e Azerbaijão com o lançamento de um gasoduto que deve substituir as vendas cada vez menores de Moscou para a Europa e Turquia. Esse golpe numa Rússia já abatida por sanções e por quedas na demanda devido ao coronavírus torna a situação mais delicada, porém a Europa tenta evitar um maior conflito na região, pois em caso de um combate prolongado, o Azerbaijão provavelmente fecharia os oleodutos por razões de segurança para evitar derramamentos de óleo e vazamentos de gás se eles fossem danificados.
Dada a conjuntura da política internacional, as perspectivas de solução pacífica para o conflito se fazem complexas: além dos fatores políticos domésticos em ambos os países e o envolvimento de potências regionais e globais contribuírem para a manutenção das hostilidades, os confrontos coincidem com um período de distração internacional devido à pandemia global e às eleições americanas.
Acerca das possibilidades de resolução do conflito, cabe mencionar que uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas, realizada em caráter de emergência no dia 29 de setembro, apoiou o papel principal de mediação do Grupo de Minsk, presidido pela França e Estados Unidos, além da Rússia, criado pela Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, em 1992.
Moscou pediu um cessar-fogo, mas, ao contrário das escaladas anteriores de grande dimensão, ainda não convocou uma reunião entre as lideranças políticas ou militares das ex-repúblicas soviéticas. Apesar da intervenção turca na disputa ameaçar seu papel tradicional de mediação e influência, o país detém considerável poder financeiro e político para pressionar pelo fim dos combates. As autoridades russas foram e têm sido fundamentais para negociar tréguas durante rodadas anteriores de combate, e muito embora Moscou não possua controle absoluto da região, ambos os lados entendem que qualquer resolução para o conflito só pode vir com o apoio russo. Além da Rússia, com exceção da Turquia, outras potências regionais e globais pediram moderação: Irã, Geórgia e Qatar se ofereceram para mediar o conflito.
O sucesso militar rápido e consolidado, seja por meio da recaptura de um território significativo pelo Azerbaijão ou da repulsão das operações do Azerbaijão pelas forças armênias, poderia possibilitar e abrir espaço para um cessar-fogo, mas também desencadear instabilidade doméstica, em qualquer dos lados que se sair pior. Nesse meio tempo, caso haja uma prolongação indeterminada das hostilidades, Turquia e Rússia, principalmente, enfrentarão, além de instabilidades na região, decisões complicadas sobre envolver-se mais profundamente ou não no conflito.
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