Dois Pesos Duas Medidas
Por mais que a Guerra Fria e o comunismo no Leste Europeu tenham findado no início da década de 1990, algumas dinâmicas permanecem na região. O governo autoritário da Bielorrússia (ou Belarus) - comandando por Aleksander Lukashenko, o único presidente a atuar no cargo desde sua criação, em 1991 - já vivia uma instabilidade interna devido às crescentes manifestações democráticas. Um incidente com um opositor de seu governo criou ainda mais problema para a imagem externa do país e aumentou tensões latentes entre Estados Unidos da América (EUA), União Europeia (UE) e Rússia.
No penúltimo domingo de maio, um avião civil da companhia aérea irlandesa Ryanair, que tinha saído de Atenas (capital da Grécia) com destino a Vilnius (capital da Lituânia), teve sua rota redirecionada por caças aéreos da Bielorrússia enquanto sobrevoava o espaço aéreo desse país, e foi forçado a realizar um pouso de emergência em Minsk (capital bielorrussa) sob o pretexto de uma suspeita de bomba implantada no avião. Após uma inspeção e nada ter sido encontrado, o avião rumou em direção à Lituânia, mas um dos passageiros ficou no território bielorrusso: o jornalista bielorrusso Roman Protasevich, um dos maiores opositores do presidente do país. Roman estava em uma conferência na Grécia junto com outros opositores de Lukashenko, e agora voltava para a Lituânia, país que lhe cedeu asilo político após o governo do país do leste europeu tê-lo considerado um “terrorista” por incitar grandes manifestações contra o governo em 2020, no ano da acirrada eleição que perpetuou o presidente no poder. Segundo alguns passageiros do vôo, quando Roman percebeu que o avião teve sua rota alterada e estava indo pousar em Minsk, ele teria dito que “enfrentaria a pena de morte” e parecia estar com bastante medo, conforme o The New York Times.
O incidente vem sendo veiculado pela imprensa ocidental como uma ação realizada pelo governo autocrático de Lukashenko para conseguir prender um dos seus maiores opositores. A agência de notícias Bloomberg mostra que os militares bielorrussos pilotaram os caças de modo a forçar que o avião com tripulação civil mudasse a rota e aterrisasse em Minsk. Para a mídia ocidental, o caso coloca em questão o “sistema internacional baseado em regras” e a Bielorrússia não poderia ficar impune.
Os governos europeus e os EUA estão condenando o ato e exigindo a imediata soltura do jornalista. Em sua rede social, o primeiro-ministro da Polônia (destino de muitos exilados do governo bielorrusso) acusou a Bielorrússia de ter feito um “ato de terrorismo de Estado sem precedentes que não pode ficar impune”, enquanto em comunicado, o governo da Grécia considerou o ato como um “sequestro de Estado”. Condenações também vieram dos governos de países como Alemanha e França, os quais defenderam sanções ainda mais severas contra o país não-membro da União Europeia, inclusive por meio de medidas coletivas adotadas pela União. De fato, a UE acabou de decidir pelo fechamento do espeço aereo e aeroportos dos países da UE a todos os voos provenientes da Bielorrússia.
Alguns oficiais do governo de Belarus, Lukashenko incluso, já haviam sofrido sanções da UE desde 2020 por atos de violência e repressão a movimentos pacíficos contrários ao governo, membros da oposição e jornalistas. A UE aproveitou o incidente para anunciar medidas adicionais. Por sua vez, Anthony Blinken, Secretário de Estado dos EUA, demonstrou bastante preocupação e acusou o governo de Lukashenko de colocar em risco as vidas dos passageiros do avião (entre os quais alguns eram americanos), e comunicou estar trabalhando com os governos da Grécia e Lituânia para tomar medidas conjuntas efetivas. Não há dúvida de que o que se pretende é algo parecido com o que ocorreu na Ucrânia: mudança de regime, instalando-se na presidência um lider pró-ocidental.
As reações não atingem apenas a Bielorrússia, mas seu principal aliado na região: a Rússia. Empresas aéreas como a Air France e Austrian Airlines cancelaram voos para Moscou (capital russa) após o governo russo negar aprovação de rotas que não passassem pelo espaço aéreo da Bielorrússia, impedindo, assim, a tentativa de isolamento aéreo do país.
O governo russo não deixa de observar a hipocrisia dos países do Ocidente, que praticamente realizaram o mesmo ato e ficaram impunes em episódios como o de 2013, quando, a pedido dos EUA, a Espanha, França, Itália e Portugal negaram acesso aéreo ao avião presidencial que transportava o então presidente Evo Morales da Rússia para a Bolívia, forçando a parada do avião na Áustria. Nessa ocasião, buscas foram feitas no avião atrás do delator e refugiado político Edward Snowden. Além disso, em 2012, lembra a rede de notícias RT, a Turquia forçou um avião civil, que fazia a rota de Moscou a Damasco (capital da Síria), a pousar em solo turco a fim de que pudesse ser inspecionado à procura de equipamento militar, violando leis de aviação civil.Na época do incidente com a Turquia, as regras da aviação civil também foram violadas, mas os países ocidentais, aparentemente, estavam mais preocupados com a mudança de regime na Síria.
A agência de notícias russa critica especialmente a falta de imparcialidade do Ocidente no tocante à aplicação de regras na comunidade internacional. Essa falta de imparcialidade prejudica a estabilidade e a confiança nas relações entre os Estados. Quando há preferência por certos valores, nesse caso os liberais, do Ocidente, em sobreposição a outros, não há um respeito ao direito internacional, mas sim, à ideologia. O problema não é a crítica as ações da Bielorrússia, mas o silência dos países ocidentais quando uma situação análoga é causada por um deles em nome da “defesa dos valores democráticos”.
Muito embora referido pelos veículos de notícia ocidentais como jornalista e ativista, Protasevich é acusado de associação a movimentos neonazistas paramilitares na Ucrânia, bem como de ser um agente ocidental para fomentar mudança de regime em Belarus. Ainda que 2021 pareça um ano distante da bipolaridade da Guerra Fria, a lógica da disputa por poder e influência, pelo menos no leste europeu, certamente permanece.
Não se pode negar que, na medida em que fere os objetivos da Organização Internacional de Aviação Civil (OACI) e da Convenção de Chicago de 1944, da qual Belarus é Estado-membro, o desvio forçado de um voo civil para fins políticos não é justificado. O artigo 44 da Convenção estabelece como um dos objetivos ro regime da aviação civil o desenvolvimento seguro e ordeiro da aviação civil internacional no mundo, bem como a satiafação das necessidades dos povos do mundo no tocante ao transporte aéreo seguro, regular, eficiente e econômico. Há também que se investigar se as ações do governo da Bielorrússia infringiram os compromissos internacionais do país assumidos no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
De modo geral, destacam-se as incoerências das indignações seletivas ocidentais que ocorrem de acordo com certos interesses e não segundo as normas internacionais, bem como a ação repudiável da Bielorrússia que certamente não ajuda no que se refere ao seu histórico de prender opositores. É preciso que haja uma maior coerência dos países no respeito às regras do sistema internacional, de modo a fortalecer as regras existentes e a segurança de que essas valem para todos.
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