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Afeganistão: cemitério de imperios


No dia 15 de agosto de 2021, o grupo Talibã conseguiu, com sua ofensiva que já vinha tomando várias províncias do Afeganistão, conquistar Cabul, sede do governo afegão, e retornar ao poder 20 anos após ter sido expulso pelas tropas dos Estados Unidos da América (EUA) em 2001-2002. Diante da situação, não só o presidente Ashraf Ghani fugiu do país, mas também milhares de afegãos tentam a mesma ação para escapar da imposição pesada da interpretação dada a Sharia (sistema jurídico do Islã, a lei islâmica), tendo ficado famosas as fotos do aeroporto de Cabul lotado de pessoas e os helicópteros estadunidenses evacuando seus diplomatas da embaixada do Afeganistão, que muito lembram as imagens da evacuação de Saigon no Vietnã em 1975, outro ressonante fracasso dos EUA. Entretanto, quem é o Talibã? Como eles chegaram ao poder? Qual o envolvimento dos EUA?

De fato, o Afeganistão era, no início do século XX, um país refém do colonialismo ocidental, e servia de Estado tampão entre o expansionista Império Russo e a Índia (a principal possessão colonial do Reino Unido) até a independência afegã em 1919. Todavia, no contexto da revolução russa de 1917 e da Guerra Fria, a ideologia do comunismo se espalhou rapidamente pela Ásia central, levando à fundação de um partido de influência comunista no país, ficando o Afeganistão na zona de influência da então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O partido comunista realizou um golpe para implantar o comunismo no país, e a URSS interviu militarmente no Afeganistão em 1979, a partir de pedido do novo governo afegão, para garantir sua sobrevivência. Entretanto, mesmo com a détente entre EUA e União Soviética, os EUA armam e financiam grupos guerrilheiros, chamados de “mujahedin”, para criar uma situação semelhante ao do Vietnã contra a URSS. Ao fim, a URSS acaba se retirando do Afeganistão em 1985. Já armados, os mujahedin, que representam diferentes tribos do país, dividem-se em disputas de poder sobre o controle do Afeganistão e parte deles funda o “Talibã” (“estudantes”, na língua mais falada do país, o pashtun) e chegam ao governo em 1996 com um discurso de segurança pública a ser trazida frente ao caos que se instalou na saída soviética.

Criado o Talibã, esse grupo e o grupo terrorista Al-Qaeda tornam-se aliados, e o Afeganistão se torna palco de treinamento para os terroristas que realizaram o ataque do “11 de setembro” no EUA em 2001. Em resposta, os EUA lançam a chamada “Guerra ao Terror” e intervêm militarmente no Afeganistão em busca da Al-Qaeda. O exército estadunidense depõe o governo Talibã do poder em 2002 e confronta-o em um conflito que durava até este ano, quando os EUA de Joe Biden retiraram as últimas tropas. O fato é que os sucessivos governos instaurados no Afeganistão eram notoriamente corruptos e ineptos, e dependentes não só da presença das tropas americanas e da OTAN, mas também dos financiamentos que os EUA injetavam no país. Os EUA pagavam os salários das tropas afegãs, financiavam seus equipamentos e faziam seu treinamento, além do longo processo de nation-building iniciado com a expulsão do Talibã. Após a queda de Cabul, o presidente Joe Biden disse em entrevista que o processo de construir uma nação no Afeganistão nunca fez nenhum sentido para ele, muito embora tenha defendido esse mesmo processo em 2001 e criticado a administração Bush por não investir mais nele.

Por sua vez, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2002, criou a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (UNAMA), a qual não se configura como missão de paz, para auxiliar na estabilização do novo governo pós-Talibão. Já em 2021, após reunir-se no dia posterior a tomada de Cabul, a ONU instou o Afeganistão a não mais servir de refúgio para grupos terroristas, e a cumprir as promessas de não cercear as liberdades das pessoas mais vulneráveis, respeitar o direito das mulheres e anistiar os que trabalharam no governo anterior. A ONU assegurou, porem, que a UNAMA continuará no país mesmo após a saída das tropas estadunidenses.

O desejo de saída das tropas americanas é antigo, já que com o passar do tempo a guerra tornou-se impopular entre os americanos e a falta de clareza quanto aos objetivos dos EUA no Afeganistão ao longo de sua presença militar tornaram-na custosa politicamente. Desde Bush, os presidentes dos EUA têm dificuldades em estabelecer se estavam lá para fazer somente contra-terrorismo, ou se também desejavam construir uma nação aos moldes da democracia liberal ocidental, o famigerado nation-building, missão extremamente desafiante em uma sociedade tribal, multiétnica e pouco ou nada estável nas últimas décadas. O resultado foi uma saída desastrosa, mal planejada, consecutiva a um acordo interino de paz que conferia legitimidade a um grupo terrorista sem a participação do governo afegão e a anos de política descontinuada dos presidentes americanos que ora diziam querer pôr fim à guerra, ora investiam em mais tropas e mais recursos para o país asiático.

Em 29 de fevereiro de 2020, obstinado a retirar as tropas americanas do Afeganistão, o então presidente Donald Trump optou por negociar um Acordo Interino de Paz com o Talibã, cujos objetivos eram a retiradas das tropas até maio deste ano em troca da garantia do grupo de que o solo afegão não seria utilizado como base para ataques contra os EUA. Além disso, o grupo deveria negociar com o governo afegão internamente a fim de alcançar um cessar-fogo permanente e uma forma de governança conjunta. Havendo descumprimento do acordo, o cessar-fogo ficaria suspenso. O acordo é apontado como essencial na trajetória de busca de legitimidade do Talibã que, nunca tendo sido totalmente extirpado do Afeganistão, manteve parte de seu comportamento de governo e nunca reconheceu o governo afegão como legítimo - o que já era indicativo de que essas negociações muito provavelmente não aconteceriam. O acordo

Ao assumir a presidência, Joe Biden poderia ter se imiscuído da responsabilidade de manter o acordo, uma vez que as conversações de paz intra-afegãs, como esperado, falharam. No entanto, o presidente decidiu manter o acordo ,mudando a data limite de saída de maio para setembro, com o intuito de sair antes do aniversário de 20 anos da guerra, que seria contado a partir de 11 de setembro de 2001. A decisão de Biden pela continuidade deu-se porque ele não só, assim como seu predecessor, queria retirar as tropas, como também, segundo ele, deparava-se com uma alternativa ainda mais difícil caso recuasse do acordo: “A escolha que tive de fazer, como seu presidente, foi seguir o acordo ou estar preparado para voltar a lutar contra o Taleban no meio da temporada de combates da primavera”, disse Biden em um pronunciamento televisionado na Casa Branca.

Diante da retirada desastrosa das tropas, com centenas de cidadãos americanos deixados para trás como reféns em potencial, muitos estão em busca de culpados – é inegável que os quatro últimos presidentes dos EUA têm sua parcela – e as notícias não são nada animadoras. Além das mortes por atropelamento no aeroporto de Cabul, restos mortais encontrados no trem de pouso de aviões e pessoas caindo por não conseguirem se segurar nele, no dia 26 de agosto, o grupo terrorista ISIS-K (braço regional do Estado Islâmico no Paquistão e Afeganistão), reivindicou autoria por um ataque nos portões do aeroporto de Cabul que matou mais de 70 pessoas, dentre estas 13 soldados americanos.

As forças dos EUA, que já começaram 2021 com o menor nível de presença militar no Afeganistão desde 2001, terminaram sua evacuação em 31 de agosto, o que permitiu o rápido avanço do Talibã, rapidez essa não prevista pelos relatórios de inteligência americanos. Soma-se a isso o fato de que os EUA deixaram aproximadamente 85 bilhões de dólares em armas, helicópteros e outros equipamentos militares, que deveriam ser utilizados para auxiliar o exército afegão, cair nas mãos do Talibã, que parece estar mais forte do que nunca após 20 anos de guerra.

Todavia, o Afeganistão não está completamente tomado, já que Panjshir, que também não foi ocupada pelos soviéticos, permanece como a única província não controlada pelo Talibã. Acredita-se que o ex-vice-presidente esteja refugiado lá junto a Ahmad Massoud, filho do conhecido Leão de Panjshir, Ahmad Shah Massoud, antigo opositor do Talibã que foi assassinado em um atentado terrorista quando dois homens-bomba se passaram por jornalistas, dias antes dos atentados de 11 de setembro de 2001. Ahmad Massoud disse estar aberto a negociações, mas também pronto para o combate, enquanto o Talibã já anunciava o envio de combatentes à região do Vale do Panjshir, localizado à noroeste de Cabul, "depois que autoridades do governo local se recusaram a entregar o poder pacificamente". Há possibilidade de Panjshir tornar-se um reduto de resistência ao Talibã, o que só poderia se sustentar com ajuda (fornecimento de armas) estrangeira, seja de vizinhos, como o Irã, ou os próprios EUA em mais uma guerra por procuração, uma vez que uma nova intervenção direta no país asiático parece bastante improvável após essa derrota.

Os olhos da comunidade internacional voltam-se agora para o tratamento que China e Rússia estarão dispostas a dar ao Talibã como governo, que, ao contrário dos países ocidentais, mantiveram suas embaixadas em Cabul. Ambos os países possuem interesses na estabilização da região considerando seus próprios problemas com terrorismo, seja no Cáucaso ou na região de Xinjiang, onde habita a minoria muçulmana chinesa da etnia uigur.

A expectativa é de que, estando o Talibã disposto a garantir a estabilidade da região, bem como a combater eventuais ameaças que possam surgir à segurança da Rússia e da China, como o Movimento Islâmico do Turquestão Oriental, o qual, acredita-se, possui atividades no Afeganistão e na província de Xinjiang, as relações entre os países devem ser amistosas, ainda que o histórico do Talibã não se mostre confiável.

Mais uma vez na contramão do ocidente, a China foi capaz de prever a ascensão do Talibã e o Ministro das Relações Exteriores chinês encontrou-se com uma delegação do grupo em Tianjin, em julho deste ano. O gigante asiático, que já é aliado do Paquistão, é de extrema importância para fornecer investimentos ao Afeganistão, que não mais contará com os dólares americanos, e se mostra como alternativa viável à reconstrução da infraestrutura do país. Em jogo, estão interesses econômicos da ordem de mais de 3 trilhões de dólares: ricos depósitos minerais que incluem minerais raros. De igual forma, ainda em 2018, Sergey Lavrov, o ministro equivalente russo encontrou-se com membros do Talibã em Moscou, a capital russa. O novo regime afegão pode ser amargo para a comunidade internacional, com sua praticas abertamente violadoras dos direitos humanos mais básicos, mas certamente não é intragável para os não-ocidentais.

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