A Volta do Intervencionismo Norte-Americano?
A guerra na Síria configura-se ainda em um risco para a paz internacional, mas situa-se num contexto maior de uma intricada rede de disputas geopolíticas. A ascensão de Biden à Presidência dos Estados Unidos está provocando uma reviravolta na política externa do país para a região, o que afeta a Síria e seus vizinhos.
Desde a internacionalização do conflito e o surgimento do Estado Islâmico, os Estados Unidos da América (EUA) operam bases militares na região, principalmente no Iraque, sendo Erbil (região curda iraquiana) e Al-Asad (oriente iraquiano) as duas mais importantes. É no território iraquiano, ao lado do Golfo Pérsico, que as tensões entre os EUA e o Irã têm se manifestado, a julgar pelos ataques contra a embaixada e base militares americanas por supostamente milícias pró-iranianas (como o Kataib Hezbollah), e as retaliações americanas, como a morte de Qassem Soleimani e o recente bombardeio ocorrido na Síria. Tentando pacificar a situação, evitando que as tensões aumentem para níveis não-desejáveis, o ministro das Relações Exteriores do Iraque anunciou visita ao Irã para dialogar sobre os acontecimentos na região. A reunião ocorrerá três dias depois que bases estadunidenses em Al-Asad foram atacadas por milícias pró-Irã.
A preocupação dos Estados Unidos com a existência de milícias treinadas por iranianos no território do Iraque se estende agora ao território da Síria, onde há forte presença iraniana também. Os recentes ataques aéreos estadunidenses na Síria são justificados como retaliação a grupos de milícias apoiados pelo Irã e situados na fronteira com o Iraque, onde controlam uma importante passagem para armas, pessoal e bens. A despeito disso, o governo sírio condenou fortemente o ataque e a continuada ocupação de seu território pelas forças estadunidenses, o que considera uma violação da soberania síria. O Ministério das Relações Exteriores de Al-Assad pediu que Biden aja conforme o direito internacional, e postura semelhante tem sido adotada pelos aliados do governo sírio, como a Rússia - a qual pede respeito pela soberania incondicional da Síria e mantém bases em seu território, e Irã, cujo governo nega totalmente seu envolvimento com mílicias na fronteira síria.
Em contraponto à administração Trump, que tinha como objetivo a retirada de tropas americanas das zonas de conflitos, especialmente no Oriente Médio, a política externa de Biden mostra-se mais parecida com a do governo Obama, de quem foi vice. A decisão de nomear Anthony Blinken para o cargo de Secretário de Defesa confirma isso. Blinken possui longa carreira diplomática e foi Assessor de Segurança Nacional de Biden quando esse era vice-presidente, bem como nomeado subsecretário de Defesa em 2015. Considerando que foi o Oriente Médio a principal área de atuação do atual Secretário de Defesa, tendo este colaborado ativamente com a formulação da política americana para a região, é razoável manter-se atento à volta de velhos hábitos da política externa dos EUA, já que o intervencionismo de Obama-Biden-Blinken traz à tona novamente a possibilidade da política de mudança de regime na Síria. Isto seria extremamente perigoso, visto que estabelecer tal objetivo político gera um conflito cuja vitória pressupõe a não sobrevivência do inimigo, de tal forma que a instabilidade deixada prolonga ainda mais o conflito e a presença estrangeira na região, a exemplo do que ocorreu no Iraque e no Afeganistão.
Nesse sentido, fontes atuais indicam que os Estados Unidos estão aumentando a presença militar na província de Hasakah, localizada no nordeste da Síria, onde forma uma fronteira triangular com o Iraque e Turquia - região com grande parte dos campos de petróleo e de terras férteis agrícolas -, e reporta-se uma segunda base militar estadunidense em construção na região, com a presença de 60 veículos blindados e veículos de engenharia do exército estabelecendo um aeroporto militar no campo de petróleo Al-Omar, na província oriental síria de Deir Ezzor.
A aparente expansão da presença militar dos EUA em território sírio deve ser avaliada à luz de um risco estratégico-militar mais amplo. A Rússia de Vladimir Putin é um importante aliado da Síria, e já existem bases militares russas no território sírio. O aumento da presença americana em território de um aliado russo seria mais um sinal do endurecimento das relações Washington-Moscou, ao lado do anúncio de sanções a sete dirigentes russos pela prisão do conhecido opositor político de Putin, Alexei Navalny.
Durante a Guerra Fria, as superpotências tiveram o cuidado de não postarem forças militares, nem intervirem diretamente, num mesmo país, prevenindo um conflito convencional que escalasse para uma guerra atômica catastrófica. Agora, pela primeira vez os os EUA (membro da OTAN) e a Rússia mantém bases militares na mesmo país e apoiam lados diferentes do conflito. O que poderia dar errado?
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