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A Turquia de Erdogan: navegando entre autonomia e alinhamento


Em 2023, o atual presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, enfrentou uma acirrada disputa eleitoral contra o candidato Kemal Kilicdaroglu. No entanto, Erdogan saiu vitorioso, consagrando mais uma vez a continuação da sua influência, que teve início em 2003. Para entender melhor como ocorreram as eleições na Turquia em 2023 e os desdobramentos do governo de Erdogan até então, confira outras matérias do Panorama Internacional.

Todavia, o presidente turco está encarando mais uma vez sérias dificuldades. Em 15 de maio de 2024, Erdogan fez uma declaração aos membros do parlamento sobre uma nova tentativa de golpe no país. Ele afirmou que os supostos conspiradores eram apoiadores do pregador Fethullah Gulen, que já havia orquestrado uma tentativa de golpe ao governo de Erdogan em 2016. O presidente e o pregador eram aliados antes da primeira vitória de Erdogan, mas seu relacionamento deteriorou-se, resultando em uma profunda rivalidade, tentativas de golpe e o autoexílio de Gulen nos Estados Unidos.

Para embasar a declaração do presidente, segundo relatos da mídia turca, as autoridades realizaram buscas Órgão de Segurança de Ancara e nas residências de altos funcionários. Como resultado, um grupo de policiais foi detido sob suspeita de “conspiração para cometer um crime”. Posteriormente, a procuradoria de Ancara anunciou o início de uma investigação sobre três oficiais do departamento de polícia da capital devido à sua conexão com o líder de um grupo de crime organizado, Ayhan Bora Kaplan. Simultaneamente, o Ministro do Interior, Ali Yerlikaya, publicou no X (o antigo Twitter) informação sobre uma operação policial de grande escala em 62 províncias do país, durante a qual 544 pessoas, presumivelmente ligadas a Gulen, foram detidas. No dia seguinte, o ministro advertiu nas redes sociais que as autoridades turcas identificariam e responsabilizariam todos os conspiradores dentro das instituições governamentais.

Para entender melhor a gravidade dos argumentos e acusações, é necessário compreender a história entre Gulen e Erdogan. Fethullah Gulen, um clérigo nascido em 1941, fundou o movimento Hizmet, também conhecido como movimento Gulen, no final dos anos 1960. O movimento enfatiza o Islã moderado, a educação e o serviço comunitário, e tem presença global por meio de escolas e centros culturais em mais de 160 países, embora suas atividades na Turquia sejam severamente restritas atualmente. Erdogan, ex-membro do Partido do Bem-Estar Islâmico, co-fundou o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) em 2001. Os dois se aproximaram nos anos 2000, por meio da oposição ao estabelecimento secular da Turquia, profundamente enraizado no sistema militar e judicial. Ambos visavam reduzir a influência da elite kemalista e promover uma governança mais orientada para o Islã. O movimento Gulen forneceu apoio significativo ao AKP, incluindo a mobilização de eleitores e a inserção de apoiadores dentro do aparato estatal. Em troca, o governo de Erdogan permitiu que instituições afiliadas a Gulen, como escolas e meios de comunicação, prosperassem, ajudando o AKP a consolidar o poder.

Com o tempo, diferenças em suas visões para o futuro da Turquia e dinâmicas de compartilhamento de poder começaram a criar fricções. A busca de Erdogan pela centralização do poder conflitou com a influência de Gulen no judiciário, na política e na mídia. Em 2010, as relações começaram a se deteriorar, especialmente após o referendo constitucional de 2010, que ambos inicialmente apoiaram. O referendo aumentou o controle do governo sobre o judiciário, contribuindo para a luta pelo poder entre o AKP e o movimento Gulen. O primeiro grande desentendimento público ocorreu durante a crise da Organização Nacional de Inteligência da Turquia (MIT) em 2012, quando promotores ligados a Gulen tentaram interrogar o chefe da MIT e aliado próximo do presidente. Erdogan viu isso como um desafio à sua autoridade, e o conflito escalou dramaticamente em dezembro de 2013, quando uma investigação de corrupção mirou o círculo íntimo de Erdogan. Ele acusou os gulenistas de orquestrarem as investigações para minar seu governo, levando a uma grande purga de supostos apoiadores de Gulen na política e no judiciário.

Após o escândalo de corrupção de 2013, Erdogan intensificou sua repressão ao movimento Gulen. Ele rotulou o movimento como um “Estado paralelo” e uma ameaça existencial à soberania da Turquia. O governo fechou meios de comunicação, escolas e empresas afiliados a Gulen, com milhares de supostos gulenistas presos ou demitidos do serviço público. Erdogan também acusou Gulen de liderar uma organização que tinha como objetivo derrubar o governo e, em 2014, de liderar uma organização terrorista. Sob o governo do presidente, a Turquia experimentou uma crescente polarização política; o seu partido no poder, AKP, centralizou o poder e alienou muitas facções dentro da sociedade turca, incluindo secularistas, curdos e até alguns islamistas. As políticas de Erdogan mais orientadas para o Islã iam contra a essência secularista e kemalista do exército, que teve a influência reduzida pelo governante por meio de expurgos e reformas.

Essa instabilidade foi impulsionada por dificuldades econômicas e agitação social, o que alimentou o descontentamento. O aumento do desemprego, da inflação e ocorrências como a questão curda e a crise dos refugiados sírios são exemplos da instabilidade. A tentativa de golpe rapidamente se desenrolou na noite de 15 de julho de 2016. Tarde da noite, uma facção dentro das Forças Armadas Turcas tentou tomar o controle de instituições e infraestruturas chave, incluindo pontes em Istambul, prédios governamentais em Ancara e meios de comunicação, declarando lei marcial e impondo um toque de recolher. A resposta de Erdogan foi rápida e resoluta. Nas primeiras horas do golpe, ele se dirigiu à nação através de uma chamada pelo FaceTime na CNN Türk, instando as pessoas a irem às ruas para resistir aos golpistas, mobilizando milhares de cidadãos para o confronto.

Na manhã do dia seguinte, a insurreição foi suprimida e Erdogan iniciou uma ampla perseguição de supostos apoiadores do golpe, incluindo não apenas militares, mas também juízes, funcionários públicos, professores e policiais acusados de ligação com o movimento Hizmet. O governo declarou estado de emergência, que durou dois anos, concedendo amplos poderes para prender, deter e demitir os suspeitos de ameaça. A tentativa de golpe colaborou ainda mais para a consolidação do poder de Erdogan e legitimou as mudanças constitucionais feitas nesse período, como a troca de um sistema parlamentar para um presidencial. A tentativa de golpe foi um evento dramático e violento, enraizado em profundas tensões políticas, militares e sociais. A resposta rápida e decisiva de Erdogan não só sufocou o golpe, mas também levou a uma reestruturação significativa do cenário político da Turquia. O rescaldo viu uma repressão generalizada à dissidência e a consolidação do poder, que, nos anos seguintes, mudou fundamentalmente a governança e a sociedade turca.

Um dos assuntos mais frequentes após esse acontecimento foi a acusação, por parte das autoridades turcas e do público, de que países ocidentais estavam envolvidos em atividades antigovernamentais, ajudando os apoiadores de Gulen e exercendo pressão sobre as autoridades turcas. Essas declarações baseiam-se na crença de que quanto mais o presidente Erdogan seguia uma política independente e defendia os interesses de Ancara, nem sempre se alinhando ao Ocidente, mais a OTAN pressionava a Turquia. Embora o Ocidente tenha condenado a tentativa de golpe, Gulen, que reside nos EUA até hoje, nunca foi extraditado, o que deteriorou as relações com Ancara.

Agora, com os pronunciamentos do presidente sobre um novo golpe, pensa-se novamente sobre a deterioração das relações entre o Ocidente e a Turquia. Essa situação já se estende por um longo tempo com inúmeras questões entre os dois: sanções dos EUA a indivíduos e empresas turcas por alegadamente ajudarem a Rússia e o Irã, o desprezo da UE em relação à Turquia, o apoio ocidental aos curdos, o abandono por parte dos EUA da neutralidade em favor da Grécia na questão Turquia-Grécia e Chipre, além do possível envolvimento americano na tentativa de golpe de 2016. A degradação das relações se viu ainda mais intensificada com o acontecimento de dois pontos críticos: a Guerra da Ucrânia e o conflito entre Israel, Palestina e Hamas. Tanto a Rússia quanto a Palestina são aliados da Turquia, que deixou claro que não irá cortar essas relações.

Todas essas ocorrências delineiam a real posição da Turquia na OTAN: enquanto o país se vê como mais do que somente uma potência regional e quer ser tratada como tal, os EUA a vê apenas como um ponto estratégico e esperam que Ancara siga as regras ditadas pelos americanos. Assim, o relacionamento continua principalmente por necessidade econômica, mas que pode ser superada pela opinião pública, já que os eleitores de Erdogan o têm  pressionado para tomar medidas mais ativas contra Israel. A Turquia entende que as relações dos EUA e de Israel não têm perspectiva de mudança e a oposição da opinião pública em relação aos dois continua a endurecer. As elites turcas acreditam que o Ocidente carece de pensamento estratégico e isso o distanciou ainda mais do resto do mundo, inclusive em virtude das relações com a China, a migração e o terrorismo.

Para Ancara, o apoio inequívoco e incondicional que a administração Biden dá a Israel confirma essa crença, provocando uma convergência entre as políticas da Turquia, do Egito, da Arábia Saudita e de outros países. Jornalistas pró-governo esperam que o conflito leve a um isolamento crescente de Israel. Independentemente de sua aproximação ideológica, a maioria dos atores políticos turcos tende a ver o recente conflito em Gaza como um entre o Ocidente – liderado pelos EUA – e o Oriente. Desde o ataque fatal ao hospital al-Ahli na Cidade de Gaza, apelos têm sido feitos ao governo para se aliar a países do Sul Global em prol de “parar a aliança EUA-Israel”. Os métodos propostos variam: na sessão de emergência da Organização para Cooperação Islâmica em 18 de outubro, Hakan Fidan, ministro de Relações Exteriores, pediu aos países muçulmanos que agissem com força e autoconfiança, desafiando a narrativa hegemônica imposta; o líder do Partido do Movimento Nacionalista, Devlet Bahçeli, disse que a Turquia deveria intervir militarmente caso não houvesse um cessar-fogo; outros pedem a expulsão dos militares americanos da Base Aérea de Incirlik e da Estação de Radar de Kürecik em Malatya.

Enquanto a ação da oposição e do próprio Erdogan parece um pouco lenta, o público está buscando cada vez mais preencher essa lacuna, falando contra a falta de ação turca na Palestina e culpando cada vez mais a OTAN. Houve protestos na base aérea de Incirlik em novembro, em que manifestantes tentaram invadir e lutaram com a polícia em equipamento de choque, que disparou gás lacrimogêneo e usou canhões de água para dispersar as multidões. Incirlik é um grande símbolo dessa luta, pois a base no sul da Turquia ainda é usada pelos EUA para entregar armas a Israel, além de hospedar armas nucleares americanas. Também houve protestos na Estação de Radar da OTAN em Kürecik, no sudeste da Turquia. Embora a Turquia tenha concordado em hospedar a estação de radar sob a condição de que as informações coletadas lá sejam compartilhadas apenas com os estados membros da OTAN, acredita-se amplamente que Israel também tem acesso.

A grande desaprovação popular turca às ações do Ocidente se mostra de maneira clara numa pesquisa realizada em 2022 pela empresa turca Gezici, que atestou que 72,8% dos cidadãos turcos entrevistados eram a favor de boas relações com a Rússia. Em comparação, quase 90% percebem os EUA como um país hostil, enquanto 62,6% entendem a Rússia como um país amigo. Além disso, mais de 60% dos entrevistados disseram que a Rússia contribui positivamente para a economia turca.

Essa percepção contextualiza as sanções impostas pela administração Biden a cinco empresas turcas e um cidadão turco. Eles foram acusados de ajudar a Rússia a evadir sanções e apoiar Moscou na invasão da Ucrânia, aumentando a pressão sobre Ancara devido à sua postura neutra no conflito. As ações dos EUA e a opinião pública turca destacam a complexa dinâmica nas relações entre a Turquia, os EUA e a Rússia, evidenciando as tensões e os desafios geopolíticos enfrentados por esses países.

A nova rodada de sanções, parte de um pacote maior que visa uma ampla gama de entidades russas, incluiu as empresas turcas Margiana Insaat Dis Ticaret e Demirci Bilisim Ticaret Sanayi, acusadas de facilitar a transferência de bens de uso dual para a Rússia. Após a invasão da Ucrânia, Ancara rompeu com seus aliados da OTAN, rejeitando a estratégia de pressão máxima do Ocidente contra o Kremlin e posicionando-se como um possível mediador entre Moscou e Kiev.

A Turquia não apenas se recusou a participar do regime de sanções ocidentais, mas suas relações comerciais com Moscou floresceram após a invasão. Em 2023, a Reuters, agência de notícias britânica, relatou que as exportações da Turquia para a Rússia aumentaram 262% ano a ano, refletindo o grau em que Ancara lucrou com a retirada dos atores econômicos ocidentais dos mercados russos. Moscou e Ancara até concordaram na construção de um novo centro de gás em território turco, que forneceria à Rússia rotas alternativas de fornecimento para exportações de gás, embora o ambicioso projeto esteja sendo retardado por disputas de gerenciamento.

Erdogan construiu uma marca política como um jogador oscilante entre a Rússia e o Ocidente, cimentada bem antes da invasão da Ucrânia, com sua decisão de importar sistemas de defesa antimísseis S-400 da Rússia. Ele mostrou-se hábil em explorar a vantagem geopolítica proporcionada pela posição da Turquia como um cruzamento estratégico eurasiático, manobrando entre Moscou e as capitais ocidentais para avançar uma visão de política externa implacavelmente pragmática que desafia e ocasionalmente contraria os objetivos mais amplos da OTAN.

A guerra na Ucrânia proporcionou a Erdogan diversas oportunidades para avançar essa marca característica de estadismo. Apressando-se para preencher o vazio diplomático deixado pelos estados ocidentais que perseguem uma estratégia de pressão máxima contra Moscou, a Turquia cimentou seu status como um dos corretores mais importantes da guerra, com seu papel em sediar as negociações de paz entre Rússia e Ucrânia na primavera de 2022 e na implementação da Iniciativa de Grãos do Mar Negro. Parece improvável que Erdogan seja dissuadido de sua postura não alinhada por esta última rodada de sanções secundárias, que segue um conjunto semelhante de designações anunciado em abril de 2023; nem há qualquer indicação de que a administração Biden esteja contemplando aumentar a pressão com ações punitivas mais diretas contra Ancara.

A Turquia está pronta para continuar colhendo os benefícios do comércio crescente com a Rússia, mas, com o acordo de grãos recentemente "terminado" por Moscou e o próprio Erdogan admitindo que não há "perspectivas promissoras de paz" entre a Rússia e a Ucrânia após uma reunião sem grandes novidades com Vladimir Putin, Ancara está achando cada vez mais difícil preencher o nicho de mediador desejado em uma guerra que ambos os lados dizem que pode durar anos.

As sanções ocorrem em um momento tenso nas relações entre os EUA e a Turquia. Não à toa, o Ocidente apoiou o candidato da oposição nas eleições passadas, uma estratégia que visava contrabalançar a crescente influência de Erdogan e suas políticas que frequentemente divergem das diretrizes ocidentais. Esta postura do Ocidente reflete suas preocupações com a direção que a Turquia tem tomado sob a liderança de Erdogan, especialmente em relação à sua política externa independente, que muitas vezes entra em conflito com os interesses dos EUA e da União Europeia.

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