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O triste fim do tratado INF


A questão nuclear é um tema o qual sempre deixa os governos alertas, pois no âmbito do atual regime de desarmamento de armas nucleares, qualquer movimento que envolva esse tipo de arma gera preocupação no sistema internacional, e por isso, as crescentes inflexões entre Estados Unidos da América (EUA) e a Federação Russa sobre o tema parecem ressuscitar antigos problemas.

O Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) foi assinado em 1987, já perto do fim da Guerra Fria, pelo presidente Ronald Reagan dos Estados Unidos e pelo último líder soviético Mikhail Gorbachev, com o objetivo de eliminar mísseis com alcance entre 500 e 5500 km. O INF marcou a primeira vez na qual as superpotências concordaram em reduzir os arsenais nacionais de mísseis nucleares, eliminando uma categoria inteira das armas nucleares de alcance médio e estabelecendo inspeções de verificação. A preocupação com o controle de mísseis de alcance intermediário nasceu em meados de 1970, quando a então União Soviética (URSS) desenvolveu esse tipo de arma, classificando-a como SS-20, em resposta ao sistema de mísseis Pershing instalado pelos EUA na Europa anos antes. A corrida armamentista nessa matéria de mísseis nucleares de médio alcance na Europa continuou, com o desenvolvimento dos mísseis Pershing II, até que os dois lados decidiram iniciar negociações sérias para o controle de armas nucleares.

De fato, com o escalonamento dos armamentos, o recém-eleito premiê soviético Gorbachev apresentou aos EUA, em 1985, um plano para estabelecer o equilíbrio entre as ogivas soviéticas SS-20 e as ogivas de mísseis de médio alcance estadunidenses, o qual foi aceito prontamente por Reagan, culminando na assinatura do INF em 1987, cuja entrada em vigor deu-se em 1 de junho de 1988.

Mesmo com a dissolução da URSS, países sucessores foram incluídos no tratado devido às instalações inspecionáveis existentes, e gradualmente os países do Leste Europeu (como Polônia e Bulgária) foram desmantelando seus mísseis ao longo do início do século XXI. Mesmo que o direito dos Estados-Partes de conduzir inspeções in loco tenha se expirado em 2001, ainda havia a possibilidade de uso da vigilância para a coleta de dados devido à continuidade da Comissão Especial de Verificação. O Tratado estabeleceu protocolos que indicavam: 1) os tipos específicos de armas a serem eliminadas - EUA comprometido a eliminar os mísseis balísticos Pershing e de cruzeiro e URSS (posteriormente Rússia) destruiria seus mísseis SS-20, SS-4, SS-5, SS-12 e SS-23 e mísseis de cruzeiro SSC-X-4; e 2) processos de verificação, que incluíam inspeção (ambas as partes poderiam realizar inspeções de curto prazo no território do outro) e monitoramento (instalação de satélites para monitorar os esforços da eliminação).

A partir de 2014, o governo estadunidense, baseando-se em relatório do Departamento de Estado, passou a denunciar que a Rússia estaria violando o tratado ao produzir e testar ilegalmente um tipo de míssil cruzeiro lançado da terra, o que foi refutado pelo governo russo. A Federação Russa, por sua vez, em documento publicado em 2015, classificou o relatório supracitado como “subjetivo, preconceituoso e parcial” e não só acusou os EUA de fazer alegações infundadas, como também de ter violado os termos do INF, bem como o espírito do TNP - Tratado de Não-proliferação Nuclear, que está em vigor desde 1970 e do qual ambos são signatários. Especificamente, o Ministério das Relações Exteriores Russo mostrou preocupação com a implantação de sistemas de lançamento de mísseis verticais (VLS - sigla em inglês) nas bases americanas (e da OTAN) na Romênia e Polônia. Segundo avaliação russa, esses sistemas poderiam lançar mísseis interceptores SM-3 e mísseis Tomahawk de alcance intermediário, o que estaria em violação direta do INF.

Em 2017, no entanto, o Vice-chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA confirmou publicamente a implantação, pela Rússia, do sistema de mísseis proibido pelo INF. Com a eleição de Donald Trump, a resposta americana foi taxativa: no início de 2019, os EUA anunciaram sua saída do INF caso a Rússia continuasse a violar o tratado - o que fez com que o governo de Putin reconhecesse a existência do míssil, ainda que negasse o teste e a alegada violação do limite de alcance estabelecido no Tratado.

Ao lado dos EUA, a OTAN afirmou em julho de 2018 que a Rússia não fornecia informações transparentes sobre o denunciado sistema de mísseis, e que, na ausência de resposta crível do governo russo, a suposição mais plausível era a violação russa do Tratado. Em agosto de 2019, os EUA se retiraram formalmente do tratado, gesto que foi depois seguido pela Rússia. A OTAN defendeu a saída formal dos Estados Unidos do Tratado, responsabilizando exclusivamente o governo russo pelo fim do Tratado.

Apesar do receio de uma nova corrida armamentista, o que se verificou após a suspensão do tratado foi uma tentativa de demonstrar boa-fé por parte da Rússia, que concordou em não posicionar mísseis 9M729 na Europa, desde que a OTAN estivesse disposta a mostrar reciprocidade.

Na negociação de um novo acordo, a administração Trump buscou incluir a China, cuja frota terrestre usa mísseis semelhantes. O mundo vive hoje uma realidade diferente da bipolaridade da Guerra Fria, e a capacidade nuclear da China, segundo os Estados Unidos, está em plena expansão. A China, no entanto, negou-se a participar de negociações para um possível novo tratado, sob o argumento de que só o faria se os Estados Unidos aceitassem diminuir seu armamento nuclear ao nível chinês.

Nesse contexto deve ser entendida a possibilidade da instalação, pelos EUA, de mísseis de médio alcance na região da Ásia-Pacífico, sobretudo no Japão. Os EUA estariam resguardando seus aliados contra outro ator importante nuclear: a China. A existência desse armamento na região, porém, será considerada como desestabilizadora, e o próprio presidente russo Putin já alertou sobre possíveis retaliações caso haja a implantação de mísseis dos Estados Unidos no Japão, dada a proximidade com o território russo.

Os chineses não são os únicos a terem adquirido a capacidade de lançarem mísseis balísticos de alcance médio. Irã, Índia, Arábia Saudita, Coreia do Norte e Taiwan, entre outros, também a possuem, o que se revela como um novo desafio para o controle de armas a nível global. O tratado INF representou um marco na questão do desarmamento (até 1991 quase 2700 mísseis haviam sido destruídos). Logo, percebe-se que uma preocupação com uma nova proliferação de mísseis até então proibidos pelo INF representa o aumento da problemática do tema nos cálculos dos países nucleares e não-nucleares. Por isso, um tratado multilateral, com a inclusão dos países que adquiriram tal tecnologia posteriormente, quiçá seja o caminho para atenuar os riscos e aumentar a segurança internacional.

Portanto, as inflexões crescentes entre EUA e Rússia sobre o Tratado INF mostram que as dinâmicas construídas durante a Guerra Fria diversificaram-se, uma vez que há outras potências em ascensão no Sistema Internacional, aumentando os desafios para a segurança coletiva. Como a questão será tratada pelo governo Biden? Ainda é muito cedo, mas a renovação do Tratado “New START” com a Rússia (estendido até 2026) mostra a preocupação do atual governo estadunidense, e o reconhecimento do governo russo, em limitar cada vez mais o rol de atuação das armas nucleares

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