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A Segurança Alimentar na China



Em vista da atual crise alimentar que assola várias nações, ganhando proporções de uma crise global, é inegável o impacto significativo que os altos custos dos alimentos têm exercido, empurrando milhões para o limiar da pobreza e exacerbando os índices de fome e desnutrição em todo o mundo. Esse cenário crítico tem raízes multifacetadas, destacando-se entre elas a eclosão da pandemia de COVID-19 e as mudanças climáticas recentes, evidenciadas, por exemplo pelo verão chinês passado que foi o mais seco e quente do país desde que registros consistentes começaram a ser mantidos em 1961.

À medida que essa crise se aprofunda, emergem preocupações cada vez mais urgentes, tanto no cenário interno quanto no panorama internacional, em relação à segurança alimentar da China. Este país, o segundo mais populoso do mundo e o maior importador global de produtos alimentícios, ocupa um lugar central nessas preocupações. Para além das consequências decorrentes da pandemia e dos eventos climáticos extremos, o conflito entre Ucrânia e Rússia tem um impacto ainda mais profundo no fornecimento externo de produtos agrícolas e na produção interna de alimentos na China.

Um exemplo elucidativo é o caso do milho. A China éo principal importador global desse grão, com cerca de um terço dessas importações em 2021 procedendo da Ucrânia. Entretanto, tal cenário não se repetiu em 2022 devido à situação de conflito no país. A guerra da Ucrânia perturbou significativamente o fluxo de produtos agrícolas e fertilizantes pela região, resultando em atrasos e incrementos nos custos das exportações de alimentos, acrescentando-se a isso as sanções econômicas aplicadas por várias nações contra Rússia e Bielorrússia em 2022, que igualmente afetaram o comércio de produtos agrícolas e fertilizantes. Como consequência, houve uma redução nas exportações e um aumento nos preços desses itens alimentícios, resultando em um encarecimento para a China, à medida que ela busca suprir sua população com alimentos.

O envelhecimento demográfico também surge como um fator substancial que alimenta as apreensões quanto à segurança alimentar chinesa. Com a melhoria contínua do sistema de saúde, a expectativa de vida da população tem aumentado, refletido pelo fato de que, em 2021, os cidadãos chineses com mais de 60 anos representam quase 20% do total da população.

Essa tendência se entrelaça com a realidade do trabalho nas áreas rurais, onde frequentemente a qualidade de vida almejada pelos cidadãos não é alcançada, o que encoraja o êxodo para as grandes cidades. Na China, país que abriga quase 500 milhões de habitantes envolvidos na agricultura, uma família rural típica opera uma pequena propriedade de 0,3 a 0,5 hectare, gerando renda suficiente para a mera subsistência, porém insuficiente para impulsionar melhorias econômicas substanciais. Esse cenário resulta na migração de muitos agricultores jovens e de meia-idade para áreas urbanas em busca de empregos mais lucrativos e menos dependentes de força braçal, deixando a terra para os idosos. Quando esses idosos já não conseguem trabalhar, suas terras ficam ociosas, gerando o desperdício de um recurso crucial.

Para mitigar esses desafios, o governo chinês tem se esforçado através de incentivos fiscais e políticas públicas para atrair de volta os cidadãos às zonas rurais. No entanto, esses esforços têm, em grande parte, encontrado resistência, pois os jovens "agricultores" nascidos após os anos 1980 não estão satisfeitos com os ganhos relativamente modestos do meio rural. Como alternativa, o governo está promovendo a transferência de direitos de uso da terra dos agricultores urbanos para investidores que, ao trabalhar em áreas maiores, podem implementar máquinas e tecnologias inovadoras que reduzem os custos e aumentam a produção. Essa abordagem se baseia na propriedade coletiva das terras aráveis na China, que são alocadas às famílias rurais de acordo com o tamanho familiar. Ao ceder esses direitos a investidores, os agricultores podem obter renda tanto das taxas de transferência quanto dos lucros anuais gerados, enquanto obtêm renda de empregos urbanos. Isso tem tornado a agricultura moderna mais atrativa, melhorando as condições de vida e trabalho no campo, o que tem encorajado os jovens a considerar a agricultura como uma carreira promissora

No entanto, há também um elemento geopolítico adicional na repentina intensificação dos esforços agrícolas da China. Como mencionado previamente, ela é a segunda nação mais populosa do mundo, com mais de 1,4 bilhão de cidadãos, ficando somente atrás da Índia. Por isso, as suas demandas alimentares são de proporções imensas e continuam a crescer à medida que a população e o desenvolvimento avançam, assim como as importações.

Em um contexto no qual a China e os Estados Unidos estão envolvidos em uma disputa comercial e pela influência global, a crescente dependência chinesa das importações de alimentos torna-se um ponto sensível em sua política externa. A China está ciente de que essa dependência representa um risco estratégico substancial, que poderia ser explorado para enfraquecer sua posição. Nesse sentido, é válido inferir que a China está desenvolvendo planos de contingência para um possível conflito com os Estados Unidos, reduzindo sua vulnerabilidade às importações de alimentos, muitas das quais provêm justamente dos EUA.

Especulando sobre o que pode acontecer num possível conflito China-EUA, é importante pontuar que uma forma rápida de derrotar qualquer nação em guerra é pela imposição de um embargo marítimo, isolando o país de suas rotas vitais de importação e exportação, o aprisionando em um conflito de desgaste, à medida que seus recursos diminuem e o tempo age contra ele. Isto aconteceu, por exemplo, entre a Grã-Bretanha e a Alemanha nas duas Grandes Guerras, quando a Grã-Bretanha impôs bloqueios navais à Alemanha, isolando-a e prejudicando sua capacidade de sustentação em longo prazo. Essa estratégia envolve o estabelecimento de uma série de alianças interconectadas e um aumento substancial na presença militar nas regiões marítimas circundantes. Caso os EUA apliquem essa tática contra a China, os EUA buscariam enfraquecê-la por meio de um embargo marítimo, com o objetivo de interromper o acesso a importações essenciais, inclusive alimentos, levando a população chinesa à escassez alimentar, o que minaria o regime e resultaria na vitória americana do conflito.

Uma contingência estratégica adotada pela China para enfrentar esses planos bélicos tem sido a criação da Iniciativa Belt and Road, que visa estabelecer múltiplas rotas logísticas através da Eurásia, tornando o país menos suscetível ao poderio marítimo em termos estratégicos. No entanto, essa medida não é suficiente. A magnitude da população chinesa e, por consequência, a demanda por alimentos, impõem à China uma margem muito estreita para concessões nesse assunto, dada sua considerável dependência de produtos agrícolas cultivados em larga escala na América. Por isso, a China vem procurando cada vez mais diversificar suas fontes de importação, principalmente de trigo. A Chinna firmou com a Rússia um acordo sobre o fornecimento de trigo durante a visita do presidente russo Vladimir Putin a Pequim para a abertura das Olimpíadas de Inverno em fevereiro de 2022, como parte dos esforços para essa diversificação de importações de trigo pela China, e também com os países da Ásia Central, como o Cazaquistão.

A situação da China, com sua gigantesca população, crescente demanda por alimentos e vulnerabilidade estratégica, é emblemática para o desafio da atual crise alimentar global. Enfrentando obstáculos que variam de fatores demográficos à geopolítica e estratégia militar, a China está adotando abordagens multifacetadas para garantir a segurança alimentar e proteger seu povo e sua posição internacional. A resolução desses desafios requer uma abordagem global cooperativa, visto que a crise alimentar não respeita fronteiras nacionais e suas implicações são sentidas em todo o planeta

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