A Revolta da África Francófona: uma nova onda de descolonização?
Recentemente, entre agosto e setembro de 2023, o Gabão foi palco de um golpe militar, que abalou profundamente o país. O golpe ocorreu em meio a uma crescente insatisfação popular, desencadeada pela reeleição “carecida de credibilidade” do presidente pró-França Ali Bongo, e se caracterizou pelo fechamento das fronteiras com países vizinhos, como Camarões, Guiné Equatorial e República do Congo, além da dissolução das instituições democráticas e da anulação de todos os acordos de segurança com a França. O impacto econômico do golpe também foi sentido imediatamente, com a empresa francesa de mineração Eramet suspendendo suas operações no país. Essa empresa detinha quase um monopólio na exploração dos abundantes recursos minerais do país, que incluem ouro, diamantes, manganês, urânio, nióbio e minério de ferro. Além disso, como membro da Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP), o Gabão possui ricas reservas de petróleo, gás natural e energia elétrica.
Nas ruas da capital, Libreville, soldados celebraram o movimento de forma efusiva, sendo aplaudidos pela população local. Vale destacar que a família Bongo, que inclui o presidente Ali Bongo e seu pai, que o precedeu no governo, governava o Gabão desde 1967, um país relativamente pequeno, com uma população de 2,4 milhões de habitantes e um exército modesto, composto por apenas 5.000 soldados. Assim, em um país onde mais de 60% das regiões sofrem com a falta de acesso a serviços básicos de saúde e água potável, essa longa permanência no poder gerou frustrações na população, em um cenário em que mais de 30% dos cidadãos viviam com menos de um dólar por dia.
Para além dos desafios crônicos de insegurança e instabilidade econômica, um fator crucial na ascensão de governos militares em toda a região foi o crescente sentimento anti-francês. A memória do passado colonial permanece profundamente enraizada na região do Sahel, caracterizado por campanhas militares brutais, trabalho forçado, repressão generalizada, supressão cultural, segregação racial e deslocamentos forçados.
O golpe no Gabão foi o quinto golpe de Estado em um país africano nos últimos três anos. Com a tomada militar do Níger em 26 de julho, pode-se dizer que a região se tornou uma verdadeira zona de instabilidade política em toda a periferia da África, e muitas nações do Sahel, incluindo Níger, Mali, Burkina Faso e Chade, agora estão sob o controle de governantes militares não eleitos. Além das suspeitas históricas relacionadas ao período colonial, as experiências mais recentes, desilusões e falhas notáveis da França na África deixaram as populações do Sahel desconfiadas da antiga potência colonial e de todas as suas atividades na região. A corrupção generalizada, a pobreza extrema, o desemprego em larga escala e a aparente ineficácia dos parceiros ocidentais e das instituições internacionais em promover estabilidade e segurança na região alienaram as populações locais de seus governos ocidentais aliados. Os líderes dos golpes em vários países capitalizaram essa crescente hostilidade, apresentando-se como heróis anticolonialistas que resistem à influência neocolonial da França e aos líderes locais, considerados como agentes corruptos dos interesses franceses. Essa é a razão pela qual as massas receberam os regimes militares com manifestações anti-francesas no Mali, Burkina Faso, Chade e, mais recentemente, no Níger
Tudo começou em 2012, quando o governo do Mali solicitou ajuda à França para enfrentar a crise de segurança no norte do país, na qual rebeldes tuaregues, povo berbere constituído por pastores seminômades, agricultores e comerciantes, e combatentes ligados à Al-Qaeda capturaram grandes áreas. A França enviou milhares de soldados e expulsou os insurgentes da capital, Bamako. Em 2014, com o apoio do governo maliano, a França ampliou sua operação antiterrorista na região, implantando 5.100 soldados em cinco países do Sahel, denominando-a Operação Barkhane, que se tornou a maior e mais dispendiosa operação militar estrangeira da França na história moderna. No entanto, apesar do alto custo humano e econômico, a Operação Barkhane não conseguiu alcançar os resultados desejados; os problemas persistiram no Mali e em toda a região, enquanto os grupos armados aumentaram sua influência e alcance. As históricas caravanas de sal que atravessavam o Saara, indo do Mali ao sul da Europa e oeste da Ásia, agora estão envolvidas no tráfico de drogas, diamantes e ouro. Isso financiou grupos como a Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), que foi apoiada por fanáticos wahhabis na Arábia Saudita e no Golfo. Ataques contra civis tornaram-se frequentes, e a situação de segurança deteriorou-se nos países do Sahel. Como resultado, as comunidades locais começaram a culpar a França por seus problemas crônicos e a desconfiar das intenções da antiga potência colonial na região.
Em 2020, uma série de meses marcados por intensos protestos nas ruas do Mali, motivados pelo crescente agravamento da segurança e alegações de corrupção generalizada, culminou em um golpe militar e na deposição do governo que mantinha estreitas ligações com a França. Essa situação desencadeou uma rápida deterioração das relações entre o Mali e a França, levando os novos líderes do Mali a buscar assistência do Grupo Wagner, empresa russa de segurança, para enfrentar a crise de segurança contínua.
Após dois anos de crescente tensão, a relação entre o governo “provisório” do Mali, que havia prometido realizar eleições após o golpe, mas falhou em fazê-lo, e a França chegou a um ponto de ruptura. Em 31 de janeiro de 2022, o Mali tomou a decisão de expulsar o embaixador francês de seu território; naquela época, aproximadamente 1000 Wagnerianos russos já estavam operando no Mali. Poucos dias depois, milhares de manifestantes contrários à presença francesa saíram às ruas, empunhando bandeiras russas e queimando representações de papelão do presidente francês Emmanuel Macron em comemoração à expulsão.
No mesmo ano, a França anunciou a decisão de retirar suas tropas do Mali e realocar parte delas para o país vizinho, Níger, como parte de uma nova estratégia para a região africana. Entretanto, essa mudança estratégica não se revelou benéfica para a imagem e a influência da França na região. O Níger logo enfrentou seu próprio golpe de Estado, e, à medida que a opinião pública se tornava cada vez mais hostil à França, os golpistas não demoraram em atribuir à França a responsabilidade pelos muitos problemas enfrentados pelo país, acusando-a de “desestabilizar a nação”. Para lidar com a situação, franceses e americanos tentaram instigar a CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental), uma das oito uniões políticas e econômicas africanas que, no entanto, enfrenta divisões internas, a intervir no Níger em resposta ao golpe, sob o pretexto da manutenção da paz. No entanto, essa tentativa fracassou devido à oposição popular, levando a França e os Estados Unidos a adotarem uma abordagem mais diplomática, embora mantendo suas tropas em alerta para uma possível intervenção (para entender mais sobre a situação do Níger, acesse esse link!).
Esse caso exemplifica as tensões e as hostilidades que alguns países africanos nutrem em relação à França e aos Estados Unidos. A principal razão por trás da rápida perda de influência e respeito da França no Sahel, agora amplamente vista como um vilão neocolonial, foi a sua abordagem errada à crise de segurança cada vez mais profunda da região e a exploração econômica neocolonialista. Em vez de tentar identificar e abordar as causas profundas do conflito, reforçando as instituições estatais e incentivando a boa governança, a França tentou resolver os problemas de segurança dos países da região exclusivamente por meio da força militar, adicionando combustível ao conflito, o que fez com que a opinião pública se voltasse contra a gestão de crise do país. Embora haja uma certa cooperação na África para combater esses grupos, o “G5 Sahel”, inicialmente focado em segurança e desenvolvimento, foi desmantelado após golpes em Burquina Faso, Mali, Níger e Chade, restando apenas a Mauritânia. A nova Aliança da África Ocidental está empenhada em erradicar grupos terroristas, mas também deseja confrontar a FrançaAfrique, e o fato de que os interesses nacionais são sempre decididos em Paris.
O maior beneficiário dos inúmeros erros cometidos pela França no Sahel, que afetaram não apenas o Mali, mas também o Níger e outros países da região, foi, sem dúvida, a Rússia. Ela, há muito tempo, tem buscado fortalecer suas relações com a África e reduzir a influência ocidental no continente. Os recentes desafios enfrentados pela França proporcionaram à Rússia a oportunidade que ela esperava há muito tempo.
À medida que ficou evidente que a França não conseguia resolver o problema do terrorismo no Sahel por meio de sua extensa operação militar, a Rússia mobilizou sua eficiente máquina de propaganda na África francófona e fez todos os esforços para inflamar os crescentes sentimentos anti-franceses na região. Enquanto isso, a presença do Grupo Wagner no Sahel foi anunciada com a promessa de concluir uma tarefa crucial que a França e, por extensão, o Ocidente, não foram capazes de cumprir: acabar com a supremacia dos grupos armados e garantir a segurança das comunidades locais.
Outro motivo de ressentimento é a exploração financeira e dos recursos naturais desses países pela França. Em 1945, o “franco colonial” foi introduzido na África Francesa, que ainda está em uso hoje, mesmo após a transição para o franco CFA representando a “Comunidade Financeira Africana". Isso implica, em essência, que a política monetária de diversas nações africanas soberanas é, de fato, controlada pelo Tesouro francês em Paris.
Originalmente, as diretrizes exigiam que o Banco Central de cada nação africana mantivesse pelo menos 65% de suas reservas cambiais anuais em uma "conta de operação" no Tesouro francês, com um adicional de 20% destinado a cobrir "passivos financeiros". Mesmo após a implementação de algumas reformas moderadas a partir de setembro de 2005, essas nações ainda eram obrigadas a transferir 50% de suas reservas cambiais para Paris, além de 20% destinados ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA). Os Bancos Centrais do CFA estabelecem limites de crédito para cada país membro, enquanto o Tesouro francês investe as reservas cambiais africanas em seu próprio nome na Bolsa de Paris, obtendo lucros substanciais à custa do continente africano, e utilizando essas reservas africanas como se fossem capital francês, comprometendo ativos para pagamentos direcionados à União Europeia e ao Banco Central Europeu (BCE).
Após a crise financeira global em 2008, o líder líbio Muammar Gaddafi propôs o estabelecimento de uma moeda pan-africana atrelada ao ouro, que poderia fornecer uma alternativa ao sistema financeiro ocidental. Essa moeda pan-africana teria seu próprio centro financeiro independente em Trípoli, e seria o plano definitivo para contornar o sistema financeiro ocidental. No entanto, a intervenção militar Ocidental na Líbia em 2011 interrompeu esses planos.
Em 2015, os e-mails hackeados da ex-Secretária de Estado dos Estados Unidos, Hillary Clinton, expuseram as ações da França na Líbia: "O desejo de obter uma maior parcela na produção de petróleo líbio", para aumentar a influência francesa no norte da África e bloquear os planos de Gaddafi de criar uma moeda pan-africana, que substituiria o franco CFA, impresso na França. Grande parte da motivação para essas ações também está relacionada ao receio da crescente influência russa e chinesa na região, a qual tem obtido sucesso por meio de uma abordagem mais pacífica. A Rússia e a China tratam os africanos como parceiros soberanos, evitam se envolver em conflitos prolongados e não exploram os recursos do continente, enquanto oferece compensações inadequadas. Por outro lado, as estratégias de inteligência francesa e a política externa da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos têm sido associadas à corrupção profunda entre os líderes africanos e, em alguns casos, à eliminação dos líderes incorruptíveis.
Durante décadas, a França tem garantido que o comércio entre nações africanas seja limitado. Por intermédio do controle da política monetária e do estabelecimento de monopólios em nações ricas em recursos naturais, a França demonstrou como é possível dominar esses recursos, frequentemente explorando mão de obra em condições precárias, sem considerações ambientais ou de saúde adequadas. No entanto, novos eventos, como a inclusão de dois novos países da África no BRICS, o Egito e a Etiópia (acesse esse link para saber mais sobre a expansão do BRICS!), delineiam uma perspectiva mais otimista para os países africanos.
A expansão dos BRICS na Etiópia e no Egito marca um novo capítulo nas relações entre o bloco e o continente africano, promovendo uma maior frequência de cúpulas na África e ampliando as atividades da organização no continente. A Etiópia desempenha um papel crucial como representante do continente africano dentro dos BRICS, em virtude de sua posição como país fundador da Organização da Unidade Africana (OUA) e sede da União Africana. No entanto, ela enfrenta desafios significativos relacionados à dívida externa, que atinge a marca de US$28 bilhões, com grande parte desse montante devido à China. O processo de reestruturação da dívida da Etiópia já está em andamento, e novos parceiros dos BRICS, como os Emirados Árabes Unidos, têm a oportunidade de se envolver nesse processo, não apenas por meio de acordos bilaterais, mas também por meio de instituições como o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB).
O principal objetivo é promover uma parceria mais profunda entre os BRICS e o continente africano, enfatizando a importância da desdolarização em várias áreas, incluindo comércio, investimentos e reservas internacionais. Os países BRICS já estão trabalhando nesse sentido, acumulando reservas físicas de ouro, realizando trocas comerciais em moedas nacionais, e implementando sistemas de transferência financeira. Os ministros das Finanças e diretores dos bancos centrais dos países foram encarregados de otimizar o comércio em moedas nacionais, fortalecendo as instituições financeiras dos BRICS e ajudando os países africanos a reduzir sua dependência de credores internacionais ocidentais, como a França, oferecendo ferramentas para combater a pobreza energética e garantir a segurança alimentar.
A expansão dos BRICS na África desempenha um papel crucial para a Rússia, especialmente devido às sanções enfrentadas pelo país o que limita as oportunidades de financiamento para projetos em seu próprio território. Com o NDB focando principalmente em financiar projetos em países em desenvolvimento, a Rússia enxerga uma oportunidade estratégica para direcionar esses fundos para projetos africanos. Isso não apenas ajuda a mitigar as restrições impostas pelas sanções, mas também fortalece os laços econômicos e políticos da Rússia com os países africanos. Em meio a todas as mudanças e desafios na região, a Rússia está emergindo como um beneficiário significativo das tensões que surgem, particularmente em relação à influência francesa na África, visto que a crescente insatisfação com a França está abrindo espaço para que o país aumente sua influência na região.
O cenário geopolítico em evolução na região do Sahel, onde as tensões entre atores internacionais como a França, os Estados Unidos e, agora, a Rússia e a China estão em jogo, tem implicações profundas para as relações internacionais e a estabilidade não apenas na África, mas no resto do mundo. À medida que novos atores entram em cena e disputam influência, é importante acompanhar como essas dinâmicas geopolíticas moldarão o futuro da região e suas conexões com os demais países, tendo impactos significativos nas alianças globais, no equilíbrio de poder e nas políticas de desenvolvimento na África e além dela.
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