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A Guerra Fria da Pesca


O Brexit - a saída formal do Reino Unido da União Europeia (UE) - trouxe benefícios e custos ao governo britânico, e trouxe à luz conflitos que pareciam estar dormentes. Enquando estava na União Europeia, o Reino Unido se sujeitava à Política Comum da Pesca, que impunha cotas de pesca aos países e abria suas zonas marítimas aos barcos pesqueiros dos países da União. Retirando-se da União Europeia, o Reino Unido não mais está vinculado às normas compartilhadas do bloco, e, ao criar novas leis e impô-las aos membros da União, reviveu uma série de desentendimentos ao longo do canal da Mancha (canal marítimo que demarca a fronteira marítima inglesa com a França e a Europa continental) com relação aos direitos de pesca na região.

De fato, na manhã do dia 6 de maio, cerca de 50-70 barcos pesqueiros franceses protestaram nas águas do porto Saint Helier da ilha de Jersey, território independente da Coroa britânica que fica no canal da Mancha. A ação da frota de barcos franceses ocorreu porque, segundo eles, os direitos de exploração da pesca nas águas territoriais da ilha, desfrutado anterirormente pelos barqueiros franceses, foram desfeitos justamente pela saída do Reino Unido do bloco, deixando os franceses numa situação difícil. A situação se agravou quando, em resposta à exigência de novas licenças às embarcações francesas pela administração de Jersey, o ministro francês de relações exteriores, Anthony Girardin, ameaçou cortar a energia da ilha, tendo em vista que é uma empresa francesa que fornece eletricidade para Jersey.

Para fazer frente à tentativa de bloqueio francês ao porto de St. Helier - uma vez que a movimentação dos barqueiros já estava bloqueando navios cargueiros e navios de Jersey de usarem o porto -, o Reino Unido enviou dois navios da Marinha Real para a ilha, e logo após, a França também mandou dois navios de guerra alegando estar realizando patrulha na área. Imaginem a situação: dois membros da OTAN – Organização do Tratado do Atlantico Norte ativaram sua marinha de guerra em função de um pequena disputa local sobre direitos de pesca.

Felizmente, após conversas entre representantes dos barqueiros, os representantes de Jersey, e os governos da França e do Reino Unido, as embarcações francesas recuaram do porto, e os dois países soberanos retiraram os navios da marinha enviados.

O que ronda todo o problema é a questão dos direitos de pesca. O jornal Le Monde mostra que a pesca no canal da Mancha é um serviço essencial para a economia francesa, já que a quota de pesca do país em águas britânicas representou, em 2018, 17% do volume de negócios total das embarcações francesas no Nordeste do Atlântico, com destaque em toneladas para as regiões Hauts-de-France (58%), Bretanha (18%) e Normandia (34%). Embora, antes do Brexit, os pescadores de todos os países do bloco (incluindo os franceses) pudessem pescar em águas britânicas devido à política pesqueira comum da UE, a pesca inglesa em outras águas europeias era menor do que a pesca do bloco em águas inglesas – o que levou a maioria dos pescadores ingleses da região a ser a favor do Brexit. Depois da saída do Reino Unido da União, pelas regras pós-Brexit em vigor desde maio, 41 licenças e autorizações foram emitidas aos navios de pesca franceses para operar nas águas de Jersey, mas nem todos os barcos franceses enviaram informações requeridas e 17 barcos tiveram o acesso restringido. Jersey agora exige que os capitães que queiram uma licença para explorar os recursos marítimos da região usem equipamentos mais modernos e também provem que já pescavam nas águas da ilha em anos anteriores, mas, na visão dos capitães franceses, esses requisitos são custosos e difíceis de cumprir (visto que a maioria das embarcações não possui sequer sistema de GPS).

Mesmo após o protesto dos pesqueiros franceses, a situação voltou a ficar perigosa novamente. O governo da França alertou que não ficaria inerte caso o Reino Unido não concedesse as licenças de pesca a todos os pescadores franceses que já eram beneficiados antes do Brexit, e estava disposto a realizar medidas de retaliação no setor financeiro, impedindo serviços desse tipo solicitados pelo Reino Unido até que a França tenha garantias britânicas de que terá suas demandas atendidas.

Embora Jersey nunca tenha sido oficialmente parte da União Europeia, uma vez que é apenas uma dependência autônoma do Reino Unido, este último é quem se responsabiliza por suas relações internacionais, por isso a questão é tratada entre a UE e Reino Unido. De acordo com a Comissão Europeia, a UE, apesar de apoiar a França, está negociando em boa fé com o Reino Unido para resolver a disputa. Ainda assim, os resultados podem não ser os mais desejáveis. Segundo o The Washington Post, o ministro das Relações Exteriores de Jersey, Ian Gorst, afirmou: “É realmente importante usar diplomacia para resolver essas questões e não fazer ameaças desproporcionais como cortar a nossa eletricidade ou bloquear o principal porto de Jersey, mas lidar com o problema em questão, que é garantir que as licenças que emitimos respeitem os direitos históricos de pesca”. Apesar das tensões mencionadas, a negociação de um novo acordo de acesso às águas territoriais de Jersey é, certamente, o meio mais imediato para resolver pacificamente a questão.

Na eventualidade de uma falha dos meios diplomáticos ou da conciliação, caso não haja resolução da disputa, pode-se recorrer, tal qual estabelecido pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, do qual o Reino Unido e França são partes, à mecanismos jurisdicionais vinculativos, tais quais o Tribunal do Direito do Mar, a Corte Internacional de Justiça, um Tribunal Arbitral ou um Tribunal Arbitral Especial, desde que as partes tenham consentido na jurisdição do respectivo tribunal. Vale lembrar que, também nos termos da mesma Convenção, as partes assumiram o compromisso de agir de boa-fé e cumprir o acordado, haja vista que novas exigências sem prévia discussão entre as partes arriscam novas tensões.

Ainda que o Reino Unido não estivesse dentro da zona do euro e - diferentemente de outros países europeus membros do bloco - nunca tenha aberto mão de sua política monetária, o Brexit, sem dúvidas, trouxe novos desafios para os mais diversos arranjos da região que, desde o Tratado de Maastricht, tornava-se cada vez mais integrada. Verdade é que formalização da saída britânica da UE permite a este país uma busca mais incisiva do seu interesse nacional com base nas regras do direito internacional. O Reino Unido pode agora ter uma postura mais firme sobre suas águas territoriais e zona econômica exclusiva, quiçá até mais condizente com seu histórico de potência marítima e com a própria campanha do Brexit. Mas talvez não seja recomendável manter aberta uma disputa com a França, e, por extensão, com a União Europeia, o que acarretaria prejuízo para os dois lados. A solução pacífica e negociada parece ser o melhor caminho.

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