A Dívida Americana e o Futuro do Dólar
Desde junho do ano passado, os Estados Unidos têm acumulado uma dívida substancial a um ritmo alarmante. Segundo Michael Hartnett, estrategista de investimentos do Bank of America, o país está adicionando um trilhão de dólares à sua dívida a cada três meses. A dívida nacional atual do país é 34,48 trilhões de dólares e continua a crescer, tendo, pela primeira vez na história dos EUA, ultrapassado os 34 trilhões, no dia 4 de janeiro deste ano.
A analogia entre a dívida nacional e o uso do cartão de crédito é frequentemente utilizada para explicar o conceito. Assim como uma pessoa que usa seu cartão de crédito para fazer compras além doe que poder pagar imediatamente, o governo federal dos EUA está recorrendo ao endividamento para cobrir as despesas correntes. O déficit fiscal, que representa a diferença entre as despesas do governo e as receitas, está atualmente em cerca de 531,86 bilhões de dólares no primeiro trimestre do ano fiscal até à data. Este número aumentou significativamente em comparação com o mesmo período do ano fiscal anterior.
Essa tendência preocupante atraiu a atenção de agências como a Moody's Investors Service, que baixou a classificação de crédito do governo federal dos EUA de "estável" para "negativa" em novembro de 2023. A principal razão seria a dívida nacional e o crescente déficit orçamentário. A Fitch também impediu a classificação de crédito do governo dos EUA de AAA para AA+, citando as restrições fiscais nos próximos três anos como motivo. Reagindo a tais notícias, o vice-secretário do Tesouro, Wally Adeyemo, afirmou que a economia americana continua forte e os títulos do Tesouro são o ativo seguro e líquido mais proeminente do mundo.
No entanto, os impactos econômicos dessas medidas não passaram despercebidos. Economistas e CEOs chamaram atenção para a iminência de uma recessão devido às altas taxas de juros, demissões em massa e um aumento de empregos a tempo parcial, o que indica uma luta crescente para muitos trabalhadores. Esses alertas coincidem com um aumento significativo nos custos de vida, como a elevação de 31% nos custos dos vales-refeição para famílias e um aumento de 26% nas taxas de seguro do automóvel a nível nacional, com alguns estados reportando aumentos de 44% num ano, como constatado pelo The Center Square. Para superar esses tempos econômicos difíceis, algumas sugestões foram feitas, como a recomendação de um CEO de que os americanos optassem por cereais no jantar como uma alternativa mais acessível.
O aumento significativo na dívida nacional tem implicações profundas nos mercados financeiros e na economia em geral. As negociações de ‘degradação da dívida’ estão atingindo níveis históricos, evidenciados pelo aumento dos preços do ouro e do bitcoin. Dito isto, o ouro, por exemplo, está atualmente sendo negociado em torno de 2.084 dólares a onça, enquanto o bitcoin recentemente esteve em torno de 61.443 dólares. A criptomoeda teve um desempenho notável, registrando seu melhor mês desde 2020 em fevereiro. As entradas em fundos de criptografia também estão no caminho de um “ano explosivo”, com um aumento anualizado de 44,7 bilhões de dólares até agora.
Tudo isso abre espaço para a discussão a respeito da possibilidade do dólar perder a condição de principal moeda de troca para o comércio internacional de bens e serviços. Na verdade, esta questão vem sendo debatida há algum tempo, mas recentemente essa conversa evoluiu para ações concretas e uma realidade iminente, em um curto período de tempo.
Recentemente, os Emirados Árabes Unidos e a China negociaram um acordo em que Dubai aceitará o yuan chinês como forma de pagamento pelas exportações de petróleo de Dubai. Em troca, Dubai poderá usar o yuan para adquirir semicondutores ou produtos fabricados na China. Enquanto isso, a Arábia Saudita e a China também estão explorando acordos semelhantes de troca de petróleo por yuan, embora ainda não tenha sido implementado nada concreto. Essas negociações são complicadas pelo acordo de longa data sobre petrodólares entre a Arábia Saudita e os Estados Unidos, mas algum progresso é esperado nesse sentido.
Além disso, a China e o Brasil chegaram recentemente a um amplo acordo financeiro bilateral, onde cada país aceitará a moeda do outro no comércio. Há também uma crescente relação estratégica entre China e Rússia. Nesse relacionamento comercial, a Rússia pode pagar em rublos para adquirir produtos produzidos chineses e outras exportações, enquanto a China paga em yuans por energia, metais estratégicos e sistemas de armas russas.
Em breve, uma nova moeda, denominada BRICS+, pode substituir todos esses acordos, ancorando-se em uma cesta de commodities para facilitar o comércio entre os membros do grupo. Esta moeda digital será administrada por uma nova instituição financeira do BRICS, permitindo transações encriptadas para registrar pagamentos entre os participantes. A expectativa é que esse sistema atraia investidores de varejo em países como Índia, China, Brasil e Rússia.
No entanto, essa estratégia pode enfrentar desafios semelhantes aos encontrados por John Maynard Keynes nas reuniões de Bretton Woods em 1944, onde ele inicialmente propôs uma abordagem baseada em um conjunto de commodities para uma moeda mundial. No final, Keynes reconheceu a conveniência e uniformidade do ouro como âncora monetária, o que sugere a possibilidade de a nova moeda BRICS+ estar vinculada a um padrão ou reserva de ouro, fortalecendo assim a posição dos membros do BRICS, especialmente Rússia e China, que possuem grandes reservas deste metal precioso.
De acordo com Janet Yellen, secretária do tesouro norte-americano, as sanções econômicas impostas à Rússia, acabaram colocando em risco a hegemonia do dólar, à medida que os demais países do sistema passaram a procurar uma alternativa à moeda estadunidense, com receio de que o mesmo pudesse acontecer com eles, em alguma situação semelhante. Agora, com a possibilidade de confisco dos ativos russos, por parte do ocidente, pode ser fortalecida a ideia de que o único ativo de reserva livre desse tipo de risco é o ouro. Assim, tem aumentado a procura pelo ouro, como forma de proteção contra uma conjuntura de instabilidade monetária e financeira global.
Tais cenários são frequentemente interpretados como o "fim do dólar como moeda de reserva", mas tal perspectiva muitas vezes reflete uma falta de compreensão sobre o funcionamento dos sistemas financeiros internacionais. Embora possa haver mudanças significativas no panorama das moedas de reserva internacionais, é importante considerar que a escolha de uma moeda como reserva não é apenas uma questão de preferência, mas também depende da disponibilidade de um mercado de títulos soberanos profundos e líquidos.
A transição para uma nova moeda de reserva, seja ligada ao ouro ou a outros ativos, não exige apenas vontade política e acordos entre as nações, mas também o desenvolvimento de uma infraestrutura financeira sólida para sustentar essa mudança. Ou seja, não se pode tser uma moeda de reserva sem um mercado de obrigações soberanas grande e bem desenvolvido. Neste cenário, nenhum país no mundo se aproxima do mercado do Tesouro dos EUA em termos de tamanho, variedade de vencimentos, liquidez, liquidação, derivativos e outros recursos necessários. Assim, o verdadeiro impedimento a outra moeda como moeda de reserva é a ausência de um mercado obrigacionista onde as reservas sejam realmente investidas.
Apesar disso, há a possibilidade de o dólar perder seu status de reserva líder muito mais rápido do que se previa anteriormente. Isso deve ao potencial de a moeda dos BRICS+ superar o mercado de títulos do Tesouro dos EUA e estabelecer um mercado de obrigações robusto e líquido, capaz de desafiar a supremacia dos títulos do Tesouro no cenário global quase que de maneira repentina. A chave reside em criar um mercado de obrigações financeiras do BRICS+ em 20 ou mais países simultaneamente, contando com o apoio de investidores de varejo em cada nação para adquirir essas obrigações. Esses títulos seriam disponibilizados por meio de bancos, correios e outros canais de venda, denominados na moeda dos BRICS+, mas com a possibilidade de os investidores adquirirem-nos na moeda local, com taxas de câmbio determinadas pelo mercado.
Uma vez que essa moeda fique garantida pelo ouro, ela ofereceria uma reserva de valor atrativa em comparação com os instrumentos locais suscetíveis à inflação ou a inadimplências, especialmente em países como Brasil ou Argentina. Os investidores chineses, em particular, poderiam considerar esses investimentos atrativos, visto que estão amplamente impedidos de acessar os mercados estrangeiros e possuem um excesso de investimentos em propriedades e ações nacionais. Se os BRICS+ adotarem um modelo semelhante ao patriótico Liberty Bond, poderão criar ativos de reservas internacionais denominados na moeda BRICS+, mesmo sem o apoio dos mercados desenvolvidos.
Em suma, a crescente dívida dos Estados Unidos tem levado a preocupações significativas sobre a estabilidade financeira global, impulsionando discussões sobre uma potencial mudança no sistema monetário internacional. A proposta de uma nova moeda denominada BRICS+, ancorada em uma cesta de commodities e possivelmente vinculada ao ouro, surge como uma alternativa aos títulos do Tesouro dos EUA. Embora essa transição apresente desafios consideráveis, como a necessidade de infraestrutura financeira sólida e um mercado de títulos robusto, a rapidez com que as negociações e acordos estão ocorrendo sugere uma realidade iminente. Caso a moeda BRICS+ seja respaldada pelo ouro e acessível aos investidores em todo o mundo, ela poderia representar uma reserva de valor atrativa, especialmente em meio a preocupações com a inflação e instabilidade econômica. Este cenário traz à tona questões cruciais sobre a posição do dólar como principal moeda de reserva e os possíveis impactos de uma transição para um novo sistema monetário internacional.
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