A Disputa Territorial entre a Venezuela e a Guiana se Acirra
A fronteira Guiana-Venezuela está passando por uma disputa territorial, cujo foco se dá em torno do Essequibo, uma região rica em recursos naturais. Para compreender o assunto, serão abordados o histórico de disputa na região, os esforços diplomáticos para negociação do conflito, como a intenção venezuelana de realizar um referendo, as tensões crescentes na região e os desdobramentos de um possível envolvimento dos Estados Unidos.
As raízes do conflito remontam ao ano de 1831. Nesse período, o Império Britânico estava em processo de consolidação de seus domínios, ao longo da costa norte da América do Sul, e a região a oeste do rio Essequibo foi integrada à Guiana Inglesa. Embora a Espanha tivesse reivindicado algumas dessas terras anteriormente, suas atenções estavam predominantemente voltadas para os movimentos de independência na América Latina, o que impediu as autoridades espanholas de contestarem efetivamente a ocupação britânica na região. Com a independência da Venezuela e a subsequente descoberta de ouro no Essequibo, na década de 1850, as autoridades venezuelanas começaram a reivindicar a região, culminando no rompimento dos laços diplomáticos com o Reino Unido em 1887, até que ambos os países conseguissem alcançar um compromisso em relação à fronteira.
Em 1897, tanto a Venezuela quanto a Guiana Britânica concordaram em submeter a disputa do Essequibo à jurisdição de um tribunal arbitral internacional em Paris, composto por juristas dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Rússia. Uma decisão de 1899 permitiu à Venezuela manter a bacia do rio Orinoco, enquanto a Guiana Britânica recebeu mais de 90% das vastas terras entre os rios Orinoco e Essequibo, que eram densamente florestadas. Atualmente, essa região constitui cerca de dois terços do território nacional da Guiana.
O que é importante compreender é que, ao longo de seis décadas, a Venezuela aceitou e respeitou as suas fronteiras com a Guiana Inglesa, inclusive durante a negociação de um acordo tripartite de 1932. Tal ocorrido envolveu, também, o Brasil, sendo este um episódio importante por confirmar os limites territoriais dos países. No entanto, em 1962, logo após o Reino Unido iniciar discussões sérias sobre a independência da Guiana, as autoridades venezuelanas anunciaram a anulação da decisão de 1899. A alegação da Venezuela é a de que possíveis erros processuais surgiram décadas mais tarde, incluindo uma acusação de conluio entre os juristas britânicos e russos. Esse movimento foi acompanhado pela militarização da região fronteiriça. Diante de uma intensa pressão diplomática para resolver a questão de maneira pacífica, o novo governo guianense e as autoridades em Caracas assinaram o Protocolo de Porto de Espanha, em 1970, estabelecendo, assim, uma moratória sobre a disputa que perdurou até 1982.
Nessa conjuntura, a Organização das Nações Unidas (ONU) iniciou a mediação de trocas diplomáticas entre a Venezuela e a Guiana, a fim de evitar uma escalada de tensões após o término do protocolo. Em 1990, a ONU estabeleceu um procedimento de Bons Ofícios para intermediar a disputa. Contudo, diante da incapacidade dos dois países de alcançar um acordo ao longo de quase três décadas, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, encaminhou o caso para a Corte Internacional de Justiça (CIJ) em 2018, onde permanece atualmente. Embora o procedimento esteja suspenso, a CIJ confirmou, durante uma audiência em 2020, que possui competência para julgar o caso. O presidente venezuelano Nicolás Maduro contesta a validade da jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ). O governo de Maduro, que atualmente enfrenta uma investigação do Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade, busca evitar qualquer forma de intervenção internacional sobre os assuntos do seu país. O apoio dos Estados Unidos à participação do TIJ, em meio às relações tensas entre Washington e Caracas, gera novas dúvidas sobre o processo.
Além disso, a descoberta dos campos petrolíferos na região de Essequibo, em 2015, pela ExxonMobil, empresa multinacional de petróleo e gás dos Estados Unidos, alterou significativamente o panorama para a Guiana. Isso porque a descoberta catapultou a Guiana, um dos países mais pobres do Hemisfério Ocidental, para se juntar às fileiras dos principais mercados energéticos do mundo. Com o aumento dos preços dos combustíveis, em razão da guerra na Ucrânia, o potencial de exportação ganhou destaque. O petróleo leve e de alta qualidade do país atraiu investidores locais e internacionais, incluindo a Hess Corp., uma empresa petrolífera norte-americana, e a China National Offshore Oil Corp. Projeções indicam que, com as taxas de extração previstas, a Guiana poderá se tornar o maior produtor de petróleo per capita do mundo.
Entretanto, o presidente Maduro parece buscar impedir esse destino, direta ou indiretamente, com o apoio russo. Basicamente, tem-se que Putin vem sendo um importante aliado do governo autoritário de Caracas tanto ao oferecer suporte, para aliviar as sanções ao petróleo venezuelano, como ao garantir a segurança pessoal de Maduro contra ameaças. Nesse cenário, a Rússia fornece bilhões de dólares em equipamento militar à Venezuela. O respaldo de Putin pode potencialmente fortalecer as ambições territoriais de Maduro para o leste, agravando as tensões na região como consequência.
Maduro reiterou sua promessa de "reconquistar" Essequibo, emitindo decretos em 2015 e 2021 para estabelecer fronteiras marítimas venezuelanas que abrangem a zona econômica exclusiva da Guiana. Ele também enviou reforços militares para a fronteira disputada desde 2015. Em 2021, uma declaração conjunta sobre as reivindicações a leste foi divulgada por Maduro e sua própria oposição, representando um raro ponto de acordo entre as forças políticas em conflito no país. Esses movimentos convenientemente se alinham com os planos da Venezuela para o Essequibo, capitalizando o nacionalismo do eleitorado em meio às crescentes crises econômicas, humanitárias e de segurança do país.
Além disso, no mês de outubro, o presidente da Assembleia Nacional venezuelana anunciou a realização de um referendo sobre a questão. Sob a justificativa de que o governo quer ouvir a opinião pública, foram formuladas cinco medidas, que seriam validadas pela população e implementadas pelo governo, após o resultado da consulta. A última medida proposta pelo governo, “A criação do estado venezuelano da Guiana Essequiba na região”, manifesta expressamente o desejo de anexação territorial de Essequibo, além da nacionalização de seus habitantes. A Guiana reagiu ao fato enviando à Corte Internacional de Justiça um pedido de suspensão do referendo. Alguns países vizinhos também vêm se manifestando sobre a questão, afirmando que o conteúdo do referendo representa uma violação a normas fundamentais da própria Carta das Nações Unidas. O governo venezuelano, todavia, se defende sob o argumento de que um organismo internacional não tem legitimidade para anular uma ordem constitucional, isto é, um procedimento de política doméstica de um país.
Nesse contexto de embates, outros atores internacionais passam a entrar em cena, como é o caso dos Estados Unidos da América. Apesar da crescente cooperação de segurança dos EUA com a Guiana, a retórica e a formação dos EUA dificilmente reforçam a postura daquele país. Diferentemente das forças armadas ucranianas, as defesas da Guiana enfrentam uma desvantagem numérica significativa: mais de 100 para 1 em relação ao vasto aparato de segurança da Venezuela. Além disso, a marinha tem apenas algumas embarcações de patrulha para proteger as águas do país. Um outro ponto a ser levantado é o de que seria mais difícil para outros países da América do Sul oferecerem assistência militar em defesa da Guiana, mesmo rejeitando a beligerância de Maduro, porque o país não é signatário do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca.
No entanto, considerar precipitada a possibilidade de uma agressão transfronteiriça na Bacia das Caraíbas não é infundado. O aumento nos preços do petróleo poderia oferecer a Maduro a oportunidade de encontrar novos clientes, dispostos a contornar as sanções dos EUA à indústria petrolífera venezuelana, proporcionando uma injeção de recursos para o governo. Isso, por sua vez, poderia reduzir a pressão sobre Maduro para mobilizar o país, se ele conseguir atender às demandas populares. Vale ressaltar que o líder venezuelano tem se tornado cada vez mais dependente das forças armadas para administrar serviços públicos e garantir a segurança interna, enfraquecendo a base tática dos militares e complicando a capacidade de mobilização de tropas no exterior. Prevenir um conflito prolongado sobre o Essequibo requer desincentivar a possível agressão transfronteiriça da Venezuela. Para isso, o respaldo diplomático ao processo da CIJ, por parte de organizações multilaterais e seus Estados-membros, é um ponto crucial. Apesar do compromisso firme da Comunidade do Caribe com a preservação da integridade territorial da Guiana e do processo da CIJ, a Organização dos Estados Americanos (OEA) apresenta divisões. A Comunidade das Nações também se posicionou a respeito da escalada do conflito, através do seu secretário-geral, que expressou profunda preocupação com o desejo venezuelano de realizar um referendo sobre o estatuto da região. O secretário-geral afirmou seu compromisso com a defesa da soberania e da integridade territorial da Guiana, uma vez que as propostas da Venezuela tendem para a anexação de territórios, prática proibida pelo direito internacional público.
Além disso, a cooperação de segurança da Guiana com outros governos da América do Sul e das Caraíbas deve focar na aquisição de armas defensivas, tecnologia de vigilância e embarcações de patrulha. Especificamente, a Guiana se beneficiaria de uma colaboração mais estreita com a Colômbia, aproveitando sua perícia e experiência ribeirinha diante da provocação rotineira da Venezuela. Ademais, os investimentos substanciais da China na indústria petrolífera da Guiana deveriam dar a Maduro motivos para reconsiderar a escalada de agressão contra a Guiana, a fim de não comprometer sua relação com o país, um dos principais beneficiários da Venezuela. Nesse sentido, a China poderia usar sua considerável influência em ambos os países para promover um acordo diplomático sobre o Essequibo.
Por outro lado, os Estados Unidos deveriam explorar a possibilidade de capitalizar o crescente isolamento internacional da Rússia para atrair Maduro a novos acordos diplomáticos e econômicos. Contudo, concessões adicionais de Maduro são necessárias, antes que os Estados Unidos considerem ajustes nas sanções à indústria petrolífera venezuelana. Qualquer reconfiguração desse tipo deve priorizar o alívio da longa crise humanitária no país e estar condicionada ao progresso em direção à restauração da democracia. A reintegração gradual do país nos mercados globais pode criar uma nova alavancagem para os Estados Unidos e seus parceiros dissuadirem a postura belicista de Caracas no Essequibo, ao mesmo tempo que geram divisões entre Moscou e seu aliado latino-americano mais próximo.
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