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Novos ares de Guerra Fria entre EUA e China


Mais de três décadas após a queda do muro de Berlim, evento que marcou e singularizou o fim da Guerra Fria em novembro de 1989, as duas superpotências do século XXI aparentam estar lançadas a uma nova guerra fria. Nos últimos anos, uma série de ameaças, sanções, acusações, disputas e confrontos demarcaram as relações bilaterais entre EUA e China: desde o âmbito do comércio internacional, com a guerra tarifária explícita a partir de 2018, até uma competição tecnológica e armamentista, os dois gigantes têm protagonizado uma disputa pela hegemonia global, ainda incerta e perigosa. Nas palavras de Henry Kissinger, ex-Secretário de Estado dos Estados Unidos e escritor, “Estamos no sopé de uma guerra fria”, afirmou de forma categórica em uma entrevista num fórum sobre economia, em Pequim, em dezembro do ano passado.

Muito recentemente, os EUA, em mais uma acusação de espionagem e roubo de propriedade intelectual, ordenaram que a China fechasse seu consulado em Houston. De forma a proteger os interesses americanos, o Departamento de Estado afirmou que tal medida visa proteger os cidadãos e a soberania do país, reafirmando a Convenção de Viena, tratado internacional de 1969 que prevê que os diplomatas respeitem o direito e os regulamentos do Estado receptor e não interfiram nos assuntos internos desse Estado. Em resposta, a China determinou o fechamento do Consulado americano em Chengdu.

Para compreender com clareza como se dá e a gravidade dessa nova guerra fria, é necessário, no entanto, que entendamos o conjunto de diversos fatores e interesses, muito contestados por ambos os Estados, que desencadearam nesse desentendimento.

No rol de disputas recentes, algumas questões geopolíticas e estratégicas tornaram-se ainda mais inflamadas. A disputa tecnológica pelo 5G, em meio a acusações de ciberespionagem, tem feito parte da retórica americana nas acusações contra a China, sobretudo com a empresa de telecomunicações Huawei. Num discurso no dia 23 de julho na Califórnia, Mike Pompeo, Secretário de Estado dos Estados Unidos, afirmou que devíamos parar de “fingir que a Huawei é uma empresa de telecomunicações inocente que está aparecendo para garantir que você possa conversar” e categorizou a empresa chinesa como uma ameaça à segurança nacional.

Houve críticas diretamente ao patrocínio do Partido Comunista Chinês (PCC) a grandes empresas chinesas, que não precisavam buscar lucros e, portanto, competiam de maneira desleal no mercado internacional. Além disso, as graves violações aos direitos humanos são outras das acusações americanas à China, como o tratamento de Pequim à minoria uigur na região chinesa de Xinjiang e a repressão aos manifestantes pró-democracia em Hong Kong.

Na questão geopolítica e estratégica, uma matéria de discordância entre os dois países e que tem inflamado o clima de nova guerra fria é em relação aos mares do leste e sul da China e também no estreito de Taiwan. Além de fazer reivindicações demasiadas e ilegais sob a égide da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, do qual é parte, o gigante asiático tem militarizado alguns conjuntos de ilhas na região, ameaçando a liberdade e a segurança de navegação nesses mares. Com relação às forças militares chinesas, Pompeo classificou o Exército de Libertação Popular como anormal e que tem como objetivo o de defender o domínio absoluto das elites do PCC, favoráveis a um “Império Chinês” e não à proteção da sua população.

Por fim, no horizonte do comércio, a disputa sino-americana alcançou limites inimagináveis ao longo da presidência de Donald Trump e desde 2018 já vinha escalando de forma significativa. O início se deu quando o presidente americano impôs taxas alfandegárias às importações de aço e alumínio da China: desde então, boicotes e sanções contra produtos, tarifas extras e sucessivas desvalorizações cambiais foram algumas das ações tomadas por um ou ambos os lados. Ademais, o fator da pandemia contribuiu ainda mais para a piora no relacionamento: a frágil trégua comercial selada entre os dois países no início do ano, isto é, o acordo preliminar realizado em janeiro que prometia diminuir o déficit americano e aliviar a guerra comercial, não encontrou condições de se concretizar.

Todos esses fatores contribuíram para a deterioração, nos últimos dois anos, das relações bilaterais, estabelecidas ainda na gestão do presidente americano Richard Nixon, na década de 1970. Vale lembrar que, até então, em meio à Guerra Fria, os EUA mantinham relações apenas com a China insular, Taiwan, mas a cisão sino-soviética à época forneceu uma abertura para a Casa Branca estabelecer laços com a China continental como um meio de conter a União Soviética.

Nesse cenário, é possível observar uma mudança na estratégia utilizada pelos EUA em relação à China. Desde o governo Nixon, tentava-se construir um vínculo que priorizava a concessão de oportunidades para que fosse concedida uma boa relação com os chineses. Agora o tom com que os EUA se referem a esta demonstra indignação e arrependimento por conta da ingenuidade demonstrada anteriormente. Ao contrário de ignorar as diferenças políticas e ideológicas fundamentais entre os países, os EUA optaram, a partir de então, por levar o posicionamento ideológico marxista-leninista da China em consideração, pois o PCC nunca ignorou essa questão enquanto realizava suas empreitadas hegemônicas comunistas.

Essa mudança está ocorrendo devido às diversas acusações de ações protagonizadas pela China, notáveis por representarem uma ameaça à economia, à segurança e à liberdade das democracias livres. Dentre elas, segundo o discurso proferido por Pompeo, estão as de que a China envia propagandistas e espiões para as coletivas de imprensa, centros de pesquisa e as instituições de ensino; rouba a propriedade intelectual e segredos comerciais; torna as principais hidrovias do mundo menos seguras para o comércio internacional; é autoritária com seus próprios cidadãos e é mais agressiva em sua hostilidade à liberdade em qualquer outro lugar; extorque as cadeias de suprimentos para depois se utilizar de trabalho escravo e insiste no silêncio sobre seus abusos dos direitos humanos ao colocar o custo da entrada das empresas ocidentais no país como condescendência com seus atos.

Tendo em vista essas práticas, os EUA vêm adotando medidas que visam lidar com a China. Ao insistirem em termos justos, tornam possível minimizar os riscos dos acordos internacionais; o Departamentos de Finanças e Comércio estão sancionando e marcando líderes e entidades chinesas que estão prejudicando e abusando dos direitos básicos; várias agências trabalharam juntas em uma consultoria de negócios para garantir que os CEOs fossem informados sobre o comportamento de suas cadeias de suprimentos na China; o Departamento de Justiça e outras agências buscaram vigorosamente a punição por roubo de propriedade intelectual.

Além disso, o Departamento de Defesa aumentou seus esforços, ao reforçar operações de navegação em favor da liberdade de navegação nos mares do leste e sul da China e também no Estreito de Taiwan, e criou uma Força Espacial para ajudar a dissuadir a China de agressão no Espaço.

Em geral, o governo norte-americano está atuando, por meio de um novo conjunto de políticas no Departamento de Estado que lida com a China, para pressionar as metas de justiça e reciprocidade do presidente Trump para mitigar desequilíbrios; promover o respeito ao direito internacional no mar do Sul da China; incluir a China nas negociações multilaterais de controle de armas estratégicas; e arrebanhar as democracias livres, as Nações Unidas, a OTAN, os países do G7 e o G20 para combinar seu poder econômico, diplomático e militar contra um inimigo em comum.

Da mesma forma, o distanciamento da China trouxe uma nova oportunidade para as relações entre EUA e Rússia, entre outras matérias, no que concerne o desafio do diálogo estratégico dos acordos de controle de armas, que estão entre os interesses das duas nações, mas do qual a China se recusa a participar. Outros países que se alinharam aos EUA no movimento de contenção da China são a Índia, o Japão e os 10 países da Organização do Tratado do Sudeste Asiático. Além de exercícios militares conjuntos e posições políticas harmonizadas, muitos desses países estão promovendo a retirada de suas empresas da China.

Setenta e dois anos depois do início da Guerra Fria, a Europa, em 2020, se percebe no mesmo fogo cruzado de 1948. Em 15 de junho, após uma videoconferência com Michael Pompeo, os Ministros das Relações Exteriores da UE sentiram-se encurralados pela escalada comercial e diplomática entre Pequim e Washington. Apesar de adotarem uma posição neutra de não participação no conflito, a União parece temerosa quanto à necessidade de mover-se para um dos lados do tabuleiro, sem colocar-se numa situação de “xeque”. A Alemanha de Merkel segue como único membro a defender um posicionamento próprio. Ainda assim, com a atual crise mundial provocada pela pandemia, a Comissão Europeia publicou medidas de proteção a suas empresas contra investidas chinesas através do White Paper e condenou a Lei de Segurança Nacional adotada em Hong Kong.

O jogo entre as duas potências também atinge o campo geopolítico do sul global. Partindo da América Latina, de um lado, Pequim reconhece cumplicidade em governantes do antigo eixo bolivariano, especialmente na Venezuela, região com a maior reserva de petróleo do mundo, onde encontrou uma ótima oportunidade de investimento. Por outro lado, o governo Trump, além de confrontar diretamente o regime chavista liderado por Maduro, celebrou recentemente o andamento do Tratado entre México, Estados Unidos e Canadá (TMEC) em substituição ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte. O Brasil, por exemplo, vive uma encruzilhada: apesar do alinhamento ideológico com os EUA, por meio do governo Bolsonaro, a China é o principal parceiro comercial do país. Mesmo com as declarações e acusações por parte do presidente e seus aliados, responsabilizando o regime chinês pela disseminação do coronavírus, os fluxos comerciais e de investimento ainda permanecem firmes.

Diferente do que ocorre nos países latino-americanos, onde a presença estadunidense é mais intensa, na África, o atual líder chinês Xi Jinping é muito mais assíduo do que os três últimos presidentes norte-americanos. O interesse chinês no continente perpassa o comércio e a cooperação: a presença militar é uma das várias intenções do gigante asiático na região. O resultado das inúmeras visitas tem mostrado que o entusiasmo não é apenas da China, os líderes africanos são os mais comprometidos em manter um relacionamento ativo com Pequim.

Em resposta às declarações anti-China de Pompeo, durante seu discurso na Biblioteca Nixon, a agência de notícias do governo chinês, Xinhua, relembrou a história das relações sino-americanas em uma de suas últimas postagens. Além de mencionar o êxito do comércio bilateral, Ye Shuhong confirmou que “os dois países realizaram cooperação internacional em questões como não proliferação, combate ao terrorismo e resposta à crise financeira internacional, responderam em conjunto aos desafios globais e realizaram muitos eventos importantes que beneficiaram ambas as partes e o mundo”. A fala de cunho conciliatório aponta para a falácia do pronunciamento acerca do “fracasso da política de engajamento dos EUA com a China”. Contudo, os acontecimentos recentes, de choques comerciais e diplomáticos entre as duas potências também não estão de acordo com o posicionamento chinês de construção de um relacionamento sino-americano coordenado e pacífico. Ao contrário dessa tendência, observa-se um retorno ao cenário da Guerra Fria, agora com novos contornos de poder.

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