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Conflito líbio internacionalizado e o choque franco-turco

Desde a queda e subsequente morte do seu ex-líder Muammar al-Qaddafi em outubro de 2011, a Líbia, envolvida num conflito civil internacionalizado, tem lutado para reconstruir e reformular suas instituições de Estado, ao mesmo tempo em que acontecimentos recentes apontam para um possível escalonamento dos combates. O país, rico em petróleo, encontra-se nessa situação caótica desde o movimento da Primavera Árabe, uma onda de revoltas populares que eclodiram em mais de 10 países do Oriente Médio e da região norte da África a partir de 2010, e a campanha de intervenção militar da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), que derrubou Qaddafi em 2011 e deu lugar a inúmeros grupos armados que controlavam feudos próprios no território líbio.

Muito embora tenha havido diversas tentativas de se construir um estado democrático no contexto líbio pós intervenção, o país desintegrou-se em 2014 em uma nova guerra civil entre governos internos rivais: cada coalizão buscou criar suas próprias instituições governamentais e nomear chefes militares e, por sua vez, cada um deles enfrentou fragmentações e divisões internas. Nesse sentido, vale salientar que além da disputa pelo poder na Líbia ser multifacetada e permeada por questões regionais, políticas e até religiosas, há atores externos estatais e não-estatais (como o Estado Islâmico) que influem na dinâmica da nação líbia.

Em um esforço para encontrar uma solução para o conflito e criar um governo de unidade, em 2015, enviados especiais da ONU conduziram-se para o país norte-africano com o objetivo de facilitar uma série de mediações e negociações entre duas frentes: a Câmara dos Representantes da Líbia de Tobruk, que possui apoio do Exército Nacional Líbio (ENL) a leste do país, e o Congresso Geral Nacional (CGN), instituição política provisória que representa o Poder Legislativo, sediado na capital Trípoli, a oeste. As negociações resultaram, no fim daquele ano, na criação do Acordo Político da Líbia e do Governo do Acordo Nacional (GAN), respaldado e apoiado pela ONU, que à primeira vista parecia promissor.

O GAN, no entanto, obteve um sucesso limitado e continuou a enfrentar obstáculos para a criação de um governo estável e unificado na Líbia, permanecendo a cisão interna. Ambos os órgãos governamentais, mais do que competir pelo poder em si, buscaram criar seus próprios bancos centrais e consolidaram o controle sobre os campos de petróleo, uma pauta sensível à economia líbia.

Desde então, este é o cenário líbio: os combates pelo controle do país e pelo domínio de territórios vêm ocorrendo, principalmente, entre dois centros rivais de poder político, no leste e oeste da Líbia, que hoje são fundamentais para entender a geopolítica do país. De um lado, há o governo de Trípoli, na figura do Governo do Acordo Nacional, liderado pelo primeiro-ministro Fayez al-Sarraj; do outro, há o governo de Tobruk, que se mudou para a cidade oriental após eleições acirradas e nomeou o General Khalifa Haftar para liderar o Exército Nacional Líbio e tentar restaurar sua soberania.

Na esfera internacional, o Governo do Acordo Nacional (GAN), reconhecido pela ONU e por alguns países ocidentais, possui como aliado fundamental e envolvido no conflito a Turquia, além do Catar e da Itália. Já o Exército Nacional Líbio conta com o apoio assertivo dos Emirados Árabes Unidos, principal oponente regional da Turquia, além de países como Rússia, Egito, Arábia Saudita e, em menor grau, França e Jordânia. Verifica-se que essas potências têm intervindo cada vez mais na guerra civil da Líbia, objetivando defender seus próprios interesses estratégicos e econômicos.

Só no ano de 2019, estima-se que aviões militares dos Emirados Árabes Unidos tenham realizado mais de 900 ataques aéreos na grande área de Trípoli no ano passado, usando drones de combate chineses e, ocasionalmente, caças de fabricação francesa. De acordo com dados de código aberto analisados ​​por especialistas em rastreamento de aeronaves, os Emirados, desde meados de janeiro desse ano, transportaram mais de 100 aviões de carga para a Líbia (ou para o Egito ocidental, próximo à fronteira), que possivelmente carregavam milhares de toneladas de equipamento militar. Outros indícios apontam que o número de funcionários dos Emirados em solo líbio também aumentou, o que, juntamente com as outras evidências, indicaria que a coalizão do Exército Nacional Líbio e seus aliados tentarão avançar e alcançar a vitória total pela força. Tal intervenção militar no conflito por parte dos Emirados e seus aliados ajudou a conter as forças da GAN, mas ainda não possibilitou a vitória final das forças do General Khalifa Haftar.

Em contrapartida, durante janeiro e fevereiro, pelo menos três navios cargueiros da Turquia entregaram, cada um, cerca de 3.500 toneladas de equipamentos e munições ao Governo do Acordo Nacional. Atualmente, a presença turca em solo líbio se faz de várias formas: além da Turquia ter atualizado sua frota de drones de combate espalhados pelo noroeste da Líbia, Ancara conta também com a tecnologia de guerra eletrônica e uma combinação de sistemas de defesa aérea dos EUA e de desenvolvimento próprio (protegendo o espaço aéreo controlado pela GAN). Ademais, desde o final de dezembro, mais de 4.000 mercenários sírios apoiados pela Turquia chegaram a Trípoli e arredores, sem mencionar o treinamento de combatentes líbios com ênfase em táticas de guerra urbana.

Dessa forma, as partes estrangeiras estão abastecendo as forças antagonistas no país com diversos armamentos, ignorando o embargo geral de armas imposto pela ONU à Líbia, além de enviar soldados e forças paramilitares. O regime de sanções da ONU foi estabelecido pela resolução 1970 (2011) do Conselho de Segurança. As sanções foram impostas, inicialmente, em reação à violação brutal e sistemática dos direitos humanos, incluindo a repressão de manifestantes pacíficos pelo governo líbio. Hoje, o regime de sanções objetiva restringir o fornecimento de armas e equipamentos militares a caminho da Líbia para limitar a duração e escopo do conflito.

No dia 19 de junho de 2020, foi realizada uma conferência em Berlim na qual líderes mundiais prometeram acabar com toda a interferência estrangeira na Líbia e defender o embargo de armas de 2011 como parte de um plano mais amplo para acabar com o conflito no país; posteriormente, no dia 26 de fevereiro, uma das pautas da Conferência de Segurança de Munique foi a questão da Líbia e as violações ao embargo. Entretanto, apesar dos aparentes esforços, a dificuldade de cumprimento do embargo é denunciada há tempos na ONU, tendo sua insatisfação expressa recentemente pela Vice-Chefe da Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia, Stephanie Williams, que definiu o embargo como “uma piada”. As críticas se dão principalmente pela incapacidade de execução do que foi acordado, visto que ambos os lados em guerra continuaram a receber armas e apoio mercenário de seus apoiadores internacionais, incluindo vários que participaram da conferência de Berlim.

No dia 5 de junho, a ONU decidiu estender a autorização, já acordada anteriormente nas Resoluções 2292 (2016), 2357 (2017), 2420 (2018) e 2473 (2019), para inspecionar navios suspeitos de violar o embargo de armas na Líbia, adotando por unanimidade a Resolução 2526 (2020). O efeito prático disso é a autorização aos Estados, atuando tanto nacionalmente ou por meio de organizações regionais, para inspecionar embarcações em alto mar com destino à Líbia ou vindas da Líbia, caso haja suspeitas de que estas estariam violando o embargo de armas do Conselho de Segurança. A OTAN tem atuado na inspeção dos navios destinados a Líbia com base nesse mandato do Conselho de Segurança (Operação Sea Guardian).

Recentemente, no dia 10 de junho, a Turquia foi acusada pela França de violar as regras da aliança na área Leste do Mediterrâneo. Segundo o Ministério das Forças Armadas Francesas, sua fragata Courbet foi “travada no alvo” três vezes por navios da marinha turca em uma das missões do Sea Guardian. Sob comando da OTAN, a fragata francesa, que patrulhava no local, tentou aproximar-se de um cargueiro com bandeira da Tanzânia, suspeito de contrabando de armamento, quando foram confrontados por navios de guerra turcos que escoltavam a embarcação duvidosa.

Esse episódio reforçou as desconfianças, não apenas da França, em relação ao envolvimento de Tayyip Erdogan no tráfico de armas para a Líbia. O Ministro das Relações Exteriores da Turquia, Mevlut Cavusoglu, contestou a situação, alegando ter havido apenas um mal-entendido. Além de defender Ancara no cumprimento de suas atividades, negando o comércio ilícito e ponderando uma operação de ajuda humanitária, Mevlut exigiu um pedido de desculpa formal da França durante uma coletiva de imprensa em Istambul.

Apesar de ter ordenado uma investigação, a OTAN confirmou o recebimento de relatórios de ambas as partes do incidente, no entanto, classificou o conteúdo como secreto e não apresentou conclusões. Já Paris, em declaração enviada à organização, suspendeu temporariamente sua participação nas missões de inspeção do Sea Guardian. Para o governo francês, a Turquia violou o embargo da aliança da qual é membro, agindo contra os interesses e propósitos do acordo que havia se comprometido. Nesse sentido, o país solicita uma postura punitiva da OTAN no caso, ameaçando remover ativos e equipamentos dos turcos. Em conferência, no dia 13 de julho, o Ministro das Relações Exteriores da França também espera que diplomatas da UE considerem aplicar novas sanções à Ancara.

As implicações desse desentendimento podem ser determinantes tanto para o rumo do conflito no norte da África quanto para a orientação da OTAN. Além do exército turco ser o segundo maior dentro do bloco, a posição geográfica do país é um importante elemento estratégico na configuração da atuação da instituição nos mares Negro e Mediterrâneo. Este incidente franco-turco é mais uma ação da Turquia que coloca em dúvida sua confiabilidade como parceiro da Aliança Atlântica. Pode-se estimar que, com o escalonamento do conflito e com essa participação cada vez mais ativa de atores de fora, a situação se assemelherá cada vez mais à conjuntura síria: outro prolongado e delicado conflito por procuração.

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