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O caso do ouro venezuelano e o reconhecimento internacional de governos


Parte das reservas de ouro do Banco Central venezuelano estão armazenadas em cofres de instituições financeiras estrangeiras, como o Banco da Inglaterra. No entanto, o Reino Unido, alegando fraude nas eleições de 2018, reconhece Juan Guaidó como presidente da Venezuela, e desde então nega pedido do Governo Maduro de transferir parcela do ouro venezuelano lá depositado.

Diante da negativa, e alegando que precisa de parte do ouro para financiar o combate ao coronavírus no país, o governo venezuelano acionou a justiça britânica para obter a liberação do equivalente a 930 milhões de euros (com a venda do seu ouro nos mercados financeiros). Na pendência de uma decisão judicial sobre a disputa, e mesmo alegando que está negociando, com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), uma garantia de que os fundos com a venda do ouro sejam direcionados para enfrentar a emergência humanitária causada pela pandemia, a Venezuela segue impedida de acessar seus recursos pelo Banco da Inglaterra (o Banco Central do Reino Unido). Na verdade, o argumento venezuelano não é considerado suficiente porque o acordo com o PNUD ainda não foi firmado nem é executável, e o governo de Maduro, conhecido pela corrupção e autoritarismo, tampouco é confiável.

Na ótica do governo de Maduro, a posição do Reino Unido coloca vidas em risco ao impedir a transferência de ouro venezuelano, prejudicando a compra de suprimentos médicos e alimentos básicos. Além disso, a economia venezuelana, em crise há anos, vem sofrendo sanções internacionais, deixando a reserva de moeda estrangeira do país cada vez menor. Dessa forma, o ouro armazenado nos cofres ingleses seria uma solução provisória para minorar os efeitos da crise que o país enfrenta.

Assim como outras pautas delicadas derivadas do contexto venezuelano de incerteza política, como o petróleo e a crise imigratória, a disputa entre o governo de Maduro e o governo britânico em relação ao ouro deriva diretamente de um desacordo sobre os efeitos jurídicos do que se convém chamar como reconhecimento internacional de governos.

O ato de reconhecimento de um governo no direito internacional, segundo relatório da International Law Association, é um ato jurídico unilateral que se caracteriza por “aceitar certas instituições e/ou indivíduos como representantes legais de um Estado em seus assuntos internacionais. Ele não precisa ser anunciado formal ou publicamente e pode ser ‘mais uma questão de implicação do que de declaração expressa’”. Ainda segundo o entendimento desse relatório, os efeitos jurídicos domésticos do reconhecimento são o “acesso aos tribunais nacionais do Estado reconhecedor, controle de propriedades estatais localizadas no exterior (como contas bancárias), possibilidade de reivindicar certos privilégios e imunidades e a atribuição de valor jurídico a atos e documentos oficiais estrangeiros”.

A grande maioria dos Estados não possui uma política consolidade de reconhecer governos; antes, eles adotam a prática de apenas reconhecer Estados, seguindo-se o estabelecimento formal de relações diplomáticas entre os dois países. A despeito disto, é possível que, em situações onde existem dois governos que reivindiquem a representação do Estado, alguns Estados optem por reconhecer apenas um deles, declarando-o como legítimo representante daquele povo. Consequentemente, os Estados que reconhecem um governo em detrimento de outro se recusarão a fazer tratativas de Estado com o governo considerado ilegítimo. O problema é quando o governo reconhecido não é aquele que efetivamente controla e governa o país.

No caso da Venezuela, desde o início de 2019, mais de 50 Estados, entre os quais o Brasil, reconheceram Juan Guaidó como presidente interino do país, denotando ruptura com o quesito da efetividade, visto que o governo de Guaidó ainda não cumpre certas condições inerentes ao exercício da soberania do Estado no direito internacional. Os Estados que reconhecem o governo de Guaidó escolheram a legitimidade democrática como o critério determinante. Somente o passar do tempo dirá qual o governo que finalmente estará à frente da Venezuela.

O impasse do reconhecimento de governo pelo Reino Unido reflete-se na missão diplomática da Venezuela. O Reino Unido possui uma embaixada em Caracas, isto é, mantém relações diplomáticas formais com o Estado da Venezuela. A embaixada da Venezuela em Londres está sendo ocupada pela representante de Maduro, Rocío del Valle Maneiro, cujas credencias aparentemente ainda seriam reconhecidas pelo Reino Unido, ao mesmo tempo que Londres também reconhece as credenciais de Vanessa Neumann como representante de Guaidó. Caberá ao Tribunal britânico, ouvido o Governo britânico e as alegações das partes, determinar qual dos dois governos representa a Venezuela. O Banco da Inglaterra não pode reter o ouro do qual é apenas custodiante, caso contrário os outros países depositários irão exigir o retorno do ouro lá depositado. Uma vez tomada a decisão judicial, o ouro será liberado para o governo venezuelano de direito.

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