Moedas digitais e criptomoedas: desafio ao dólar americano?
Quase 235 anos após o seu surgimento, o dólar americano segue soberano globalmente, mas nem sempre foi assim. Na verdade, seu império é recente, datado do pós-Segunda Guerra, já que, durante o conflito, os Estados Unidos acumularam a maior quantidade de ouro mundialmente, através do financiamento dos Aliados. Dessa forma, esgotada a reserva de ouro de grande parte dos países envolvidos, o padrão-ouro chegou ao fim, dando lugar ao sistema monetário estadunidense. E em 1944, com a consolidação do Acordo de Bretton Woods, o dólar americano tornou-se oficialmente a moeda de reserva internacional por inúmeros Bancos Centrais.
Nesse sentido, houve uma aceleração na demanda por títulos do Tesouro norte-americano, que era considerada a forma mais segura de guardar dólar. No entanto, apreensões em relação à estabilidade do câmbio e à força do dólas, motivadas pela cstosa guerra do Vietnã, motivaram vários países a converterem seus acúmulos para o ouro, e só após a intervenção do presidente Richard Nixon, desvinculando o dólar do ouro, é que emergiu um novo regime cambial sem controle sistemático do governo (câmbio flutuante), em 1973, que é utilizado até hoje.
Atualmente, o Federal Reserve é responsável pela emissão dessa moeda, que em sua maior parte circula livremente fora dos EUA: segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), mais de 61% das reservas estrangeiras são em dólar americano, assim como 40% da dívida mundial.
Por que o dólar domina o sistema monetário mundial? Além da hegemonia econômica estadunidense desde a Segunda Guerra, a moeda é popular entre fornecedores e consumidores, é ausente de inadimplência federal, possui baixa liquidez e inflação previsível. Ademais, os mercados financeiros norte-americanos são os maiores e mais saturados. Portanto, é quase impossível a existência de uma alternativa semelhante que supra todas essas prerrogativas, dificultando o esforço para uma maior independência desse ativo financeiro.
Com a última crise financeira global, que começou em 2008 após a falência do tradicional banco de investimentos estadunidense Lehman Brothers, levantou-se a questão da necessidade de mudar o sistema monetário internacional. Nesse contexto, além de se questionar o dólar americano como moeda de reserva mundial e de comércio internacional, especialistas vêm debatendo a possibilidade de uma alternativa global à moeda.
O governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, que já havia desprezado o bitcoin e seus pares de criptografia, disse que uma moeda digital global poderia substituir o dólar como moeda de reserva mundial. Carney afirmou, em um discurso na reunião de banqueiros centrais de todo o mundo em Wyoming, nos EUA, que o advento de uma moeda digital “pode atenuar a influência dominante do dólar sobre o comércio global".
Os comentários de Carney seguem em consonância com a tentativa do Facebook, um dos gigantes da mídia social, de conquistar o apoio dos reguladores financeiros globais para seu projeto de moeda digital Libra, que tem estimativa de ser lançada ainda esse ano. Com as notícias veiculadas ano passado do projeto Libra do Facebook, o qual ambiciona, de certa maneira, o status de banco central como emissor da primeira moeda global, o longo debate entre os banqueiros centrais sobre a necessidade de moedas digitais foi amplamente discutido.
Cabe salientar que a influência do dólar nas condições financeiras globais poderia diminuir consideravelmente caso o sistema financeiro se desenvolvesse em torno de uma nova moeda, agora digital, em substituição ao domínio do dólar nos mercados de crédito. É nesse sentido que os interesses dos governos têm implicações diretas no surgimento ou não de uma possível nova moeda global.
Seguindo as tendências globais, o governo da China foi um dos muitos que mostraram interesse nessa área, tendo seu próprio projeto para desenvolvimento do DCEP (Digital Currency Electronic Payment), a moeda digital controlada pelo governo chinês, que faz parte da tentativa de tornar o yuan uma moeda globalizada. Tal moeda ainda se encontra na fase de testes, e, segundo o Banco Popular da China, quatro cidades estão realizando testes-piloto do DCEP no momento.
Porém, para alcançar o status global que almeja, o DCEP ainda teria que atrair potenciais usuários que estejam dispostos a aderir ao uso de sua nova moeda e provar uma melhor aplicabilidade do que as demais moedas já existentes e amplamente utilizadas no mercado, como o Bitcoin. É interessante ainda termos em mente as diferenças entre uma moeda digital e as criptomoedas existentes.
Correspondentemente com o Bitcoin, o DCEP utiliza tecnologia blockchain, mas suas características fundamentais o tornam uma criptomoeda diferenciável, visto que o DCEP é sancionado e centralizado pelo governo, ao invés de possuir fonte descentralizada e controlada por um algoritmo, e seu lastro é controlado pelo governo e não distribuído pelo sistema, não conferindo anonimato aos seus usuários. Somado a isso, ele funcionará como uma moeda normal e será integrado ao sistema comercial, tornando evidente a tentativa de Beijing de conceder mais poder ao Banco Central da China ao contrabalancear o que tem sido chamado de “utilização do dólar como arma", isto é, como ferramenta de política externa, segundo o China Daily em 24 de abril. O mais ameaçador, para o dólar, é a perspectiva de que a China venha a lastrear o DCEP nas suas reservas de ouro.
Entretanto, as tentativas da China e do Facebook têm sido encaradas como uma iminente afronta pelo governo dos EUA. Nesse âmbito, alguns legisladores dos EUA propuseram a criação de dólares digitais e as chamadas FedAccounts, que ajudariam a compensar os danos causados pelo coronavírus. Todavia, o Congresso americano ainda é muito dividido, impossibilitando a inclusão desse tipo de programa em projetos de lei, além de que os governantes parecem ainda não vislumbrar as vantagens e a necessidade da criação de uma criptomoeda pelo governo americano.
A exemplo disso, estão as declarações do presidente dos EUA, Donald Trump, que lançou recentemente um ataque contundente ao bitcoin e às criptomoedas como o plano do Facebook, marcando-os como "ativos criptografados não regulamentados" e baseados em "nada". Trump ressaltou ainda a força e a confiabilidade do dólar e afirmou que ele é “de longe a moeda mais dominante em todo o mundo, e sempre permanecerá assim”.
Essas dificuldades deixam um vácuo a ser preenchido em breve, posto que há planos para serem lançadas moedas digitais e criptomoedas ainda esse ano, e caso essa situação não seja contornada com um plano concreto de ação, os EUA estarão condenados a assistirem a paulatina queda da supremacia dólar, e, por consequência, da sua posição hegemônica no sistema