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A Disputa Estratégica Sino-Indiana


Recentemente, a Índia e a China, protagonizando uma disputa fronteiriça antiga que já levou os dois países à uma guerra em 1962, reforçaram o envio de tropas na região de Ladack, região indiana ao norte do país, em meio a tensões elevadas e após um confronto direto entre tropas rivais nos dias 5 e 6 desse mês (maio). Reforços e fortificações de tropas ocorreram em lugares como Demchok, Chumar e Daulat Beg Oldie, com o vale de Galwan também emergindo como um ponto de inflamação. Os dois países possuem várias disputas territoriais e, ocasionalmente, acontecem confrontos ao longo da Linha de Controle Real (LAC, na sigla em inglês) mutuamente acordada na região fronteiriça da Caxemira e também na fronteira entre o estado indiano de Siquim e o Tibete (região autônoma da China). As reinvindicações territoriais de cada qual sobre o território alheio cobre uma área significativa de terras.

Apesar dos dois lados terem optado por reforçar substancialmente o destacamento de forças armadas, como medida de precaução, pode-se dizer que houve uma minimização do conflito recente. Enquanto o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, reafirmou o caráter pacífico e tranquilo das tropas chinesas nas áreas fronteiriças, o Exército Indiano também minimizou os acontecimentos, alegando que tais "confrontos temporários e de curta duração" provavelmente ocorreriam entre as tropas de fronteira enquanto o limite permanecesse não demarcado.

É preciso salientar que o Acordo Sobre Manutenção da Paz e Tranquilidade ao longo da Linha de Controle Real nas Áreas de Fronteira da Índia-China, estabelecido em 1993, estrutura de forma básica como lidar com tais questões. O compromisso, além de estabelecer "consultas pacíficas e amigáveis" para disputas do tipo, nega o uso ou a ameaça do uso da força como instrumento legítimo de negociação. Verifica-se, no entanto, que os confrontos na fronteira sino-indiana parecem estar se intensificando: contemporaneamente, houve conflitos entre abril e maio de 2013, em junho de 2017 e em 2018, além do mais recente em 2020.

Mesmo a China e a Índia demonstrando capacidade de solucionar problemas de fronteira com seus vizinhos, como o Paquistão, o Nepal e o Mianmar, o mesmo não ocorre com o litígio entre as nações. Nesse sentido, o que explica o não progresso em resolver as disputas que envolvem a fronteira sino-indiana é o fator estratégico: para explicar o dilema e as perspectivas enfrentados pelos Estados, alguns teóricos utilizam a teoria dos jogos. Denominado também como “problema de compromisso”, essa situação pode ser considerada um jogo de soma zero, o qual um benefício de um jogador implica no prejuízo do outro, pois, além das expectativas e das forças opostas, firmar acordos de fronteira implicaria que os países se comprometeriam em negociações e em uma possível divisão de benefícios.

De maneira simples, se para um dos países, ceder pressupõe que o outro obterá alguma vantagem, não há incentivos para qualquer dos dois firmarem um acordo negociado que ponha fim a essa disputa. Nesse cenário, a melhor alternativa para garantir a paz e a ordem nas fronteiras sino-indianas parece ser a comunicação militar-militar entre os países, no intuito de solucionar e esclarecer quaisquer eventuais questões fronteiriças. O controle conjunto, bem como a desmilitarização mútua, de importantes passagens nas montanhas e pontos estratégicos de estrangulamento se mostram opções viáveis. Ademais, entendida a questão fronteiriça, para que compreendamos melhor o fator estratégico na conjuntura entre as duas nações asiáticas, é necessário abranger outros aspectos estruturais dessa relação.

Apesar de ambos participarem dos BRICS, as relações entre Índia e China possuem um caráter antagonista evidente: se observa de forma recorrente a tentativa da Índia de contrabalancear o poder regional exercido pela China na Ásia, fato esse evidenciado pelas disputas territoriais já mencionadas e que fizeram de suas fronteiras compartilhadas palco para grandes conflitos e desentendimentos limitados.

Além disso, as desavenças entre os países também advêm da questão do Dalai Lama, na qual a Índia permite que o Dalai Lama, que fugiu do Tibete em 1959 devido à opressão antirreligiosa da China comunista, estabeleça um governo exilado no país. Somado a isso, para balancear o poder da Índia, a China dá apoio ao seu rival, o Paquistão, realizando uma cooperação de segurança, desafiando a cooperação protagonizada entre os Estados Unidos e a Índia, que vem avançado nos últimos anos.

Na questão do comércio, a Índia se queixa de contínuos déficits ao longo dos anos protagonizados pela China, que somam US$53 bilhões, e mesmo apesar de já estar diminuindo esse desequilíbrio, Nova Deli ainda exige ao seu vizinho que absorva mais de seus produtos para diminuir a diferença, reivindicando um melhor acesso ao mercado chinês.

No cenário diplomático, os interesses dos dois países diferem, pois a China acredita na política de poder e em sua superioridade estratégica natural. Desse modo, para o país, não há espaço para outros no topo da hierarquia do tabuleiro asiático, e sua pretensão de ter um domínio em assuntos globais é expressa pela ambiciosa Iniciativa do Cinturão e Rota. Por sua vez, a Índia anseia por equilíbrio ou mesmo superioridade estratégica, e a política externa do primeiro-ministro indiano Shri Narendra Modi evidencia isso a partir de abordagens diplomáticas com os países vizinhos no Sul da Ásia e um maior engajamento com as principais potências globais.

Não obstante, quando possível, Pequim tentou construir uma "coalizão" com a Índia em nível global como membros do "Sul Global”, e em 2020 a China está anunciando 70 eventos ao longo do ano com a Índia para comemorar o 70º aniversário de suas relações diplomáticas. Entretanto, essas ações visam na verdade conter uma emergente aliança entre Índia e EUA, que é uma ameaça à China, pois a presença militar americana no Oceano Indo-Pacífico limita a expansão estratégica da China e poderia significar uma guerra futura de duas frentes contra os Estados Unidos e a Índia.

Ainda no início deste ano, entre os dias 24 e 25 de fevereiro, o líder estadunidense, Donald J. Trump, visitou a Índia, convidado pelo primeiro-ministro indiano Shri Narendra Modi, para consolidar o compromisso estratégico entre as duas democracias. O interesse dos EUA na região foi anunciado anteriormente, em junho de 2019, na publicação do Relatório Estratégico sobre o Indo-Pacífico, pelo Departamento de Defesa, e a parceria visa o empenho mútuo, principalmente, nas áreas de defesa e segurança. Em conformidade com o objetivo indiano de aumentar o seu potencial de defesa militar, Trump reconheceu o país como principal parceiro de defesa, tornando-o prioridade na transferência de tecnologia avançada dos EUA. Além disso, as negociações econômicas também fizeram parte da reunião, e os estadistas usaram a oportunidade para fortalecer as relações comerciais bilaterais a longo prazo. Já no âmbito da ciência, tecnologia e inovação, a Organização de Pesquisa Espacial Indiana (ISRO) e a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA) ambicionam lançar o primeiro satélite de radar de dupla frequência em uma missão conjunta prevista para 2022.

Entretanto, apesar da congruência de perspectivas em muitas questões, os países enfrentam desafios em suas relações bilaterais que dificultam a realização de operações combinadas. A Índia e os Estados Unidos divergem na concepção do mapeamento da região Indo-Pacífica: para os EUA, o território corresponde ao Comando Indo-Pacífico, enquanto a Índia reconhece todo o domínio do Oceano Índico, incluindo o Golfo Pérsico, como “Indo”. Essa discordância geográfica afeta significativamente os interesses de cada um desses atores que priorizam, de forma controversa, uma das áreas – o Pacífico é o foco estadunidense e o Índico é a preferência indiana, já que a presença chinesa nessa área é mais ameaçadora para a Índia. Ademais, o Irã também é um ponto de atrito entre Washington e Nova Délhi, no entanto, a influência indiana no país islâmico atua como uma balança de poder contra a China na região.

A expansão das forças armadas chinesas e a política agressiva da China no Mar da China Meridional estimulam a consolidação de uma relação mais estreita entre a Índia e outros países da região, além dos EUA. A crescente aproximação da Índia com o Japão (os Ministros das Relações Exteriores e de Defesa negociaram um acordo de aquisição e serviço cruzado entre as Forças Armadas indiana e japonesa) faz parte da política externa da atual “Diplomacia Modi” e seu esforço para tornar o Estado uma potência regional e global. O mecanismo de reunião ministerial 2+2 e o diálogo quadrilateral informal entre Estados Unidos, Índia, Japão e Austrália são exemplos desse alinhamento estratégico, aspirando o propósito maior de liderança global.

A parceria estratégica da Índia com os Estados Unidos e com o Japão faz parte da ambiciosa diplomacia do governo indiano de equilibrar o poder chinês e conter o expansionismo da China, ao mesmo tempo em que alavancar a posição de poder da Índia no sistema internacional.

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