A História se Repete? Parte II
Desde o início da guerra civil síria, o Irã tem apoiado o regime de seu fiel aliado Assad, emprestando assistência financeira e militar (sob a forma de armas e equipamentos militares, e direção e comando militar). Mais o Irã também participa das hostilidades, mediante forças do Hizbollah (o grupo armado xiita que controla o sul do Líbano), de milícias xiitas vindas do Iraque, e de “voluntários” (chamados de “forças Basij”). Sobre os Basijs, a agência iraniana de notícias IRNA comunicou recentemente a morte de um comandante dessas forças no sul da Síria (veja aqui). Para o Irã, o conflito na Síria é parte de uma disputa mais ampla com os países do Golfo (Arábia Saudita, Qatar, etc) e Turquia pela hegemonia na região e liderança do mundo islâmico. Outra manifestação desse conflito é a guerra civil no Iêmen. Como observado em outra postagem, o acordo entre o Irã e o grupo de potências P5+1 (EUA, Rússia, Reino Unido, China, França, e União Européia), livrou o Irã do regime internacional de sanções e liberou bilhões de dólares que agora poderão ser canalizados para zonas de disputas estratégicas, como a Síria.
O desenvolvimento mais importante, porém, foi a decisão da Rússia de intervir diretamente no conflito para combater o Estado Islâmico. A Rússia mantém uma base aérea militar, ao lado de tanques, soldados, baterias de mísseis antiaéreos, e toda sorte de equipamento militar. Já iniciou, há 2 semanas, uma intensa campanha aérea e naval contra o Estado Islâmico e outros grupos armados rebeldes, utilizando inclusive mísseis to tipo cruise, lançados de navios de guerra no Mar Cáspio. Assim fazendo, a Rússia está fortalecendo a posição do regime de Assad e se postando ao lado do Irã. Rússia tem na Síria o mais tradicional e fiel aliado do Oriente Médio, além de acesso permanente a um porto Sírio que fica no Mediterrâneo (porto de Tartus). Mais ainda, a permanência de Assad asseguraria a descontinuidade do projeto de gás do Qatar-Arábia Saudita, o que preservaria a posição russa de fornecedor primário de gás na Europa. O sucesso da campanha russa já torna Putin famoso entre os Iraquianos, que sofrem com as atrocidades do Estado Islâmico. Há notícias de que líderes iraquianos consideram pedir uma intervenção russa semelhante contra o Estado Islâmico.
E a Turquia? Esse país vive por regras próprias e por sua agenda peculiar de reinstalar o antigo Império Otomano. O objetivo imediato de deposição de Assad do governo tem em vista a extensão do domínio turco sobre as terras sírias. Para tanto, a fronteira turca tem funcionado como um portal de entrada de guerrilheiros muçulmanos vindo de todas as partes do mundo, incluindo da província chinesa de Xinjiang. A Turquia também se aproveitou dos recursos petrolíferos em mãos do Estado Islâmico e demais grupos rebeldes: sabe-se que o petróleo é clandestinamente transportado e vendido para a Turquia. Para provocar um envolvimento maior da Europa nas ações contra o regime de Assad, a Turquia abriu as comportas para que centenas de milhares de árabes (sírios, libaneses, iraquianos, etc), afegãos, paquistaneses, etc, refugiados ou não, ingressassem a Europa pelo sul. Com a crise dos refugiados, a Europa também se rende à Turquia, e já há planos de ajuda a ser dada pela União Européia para a solução da crise dos migrantes na Turquia.
O conflito internacionalizado na Síria corre, agora, o risco de verdadeiramente se mundializar. Na Guerra Fria, as superpotências nucleares evitaram a todo custo o perigo de envolvimento direto de suas forças armadas num mesmo teatro de operações, temendo uma eventual situação localizada de combate que acionasse uma guerra nuclear entre as mesmas e seus aliados. Na Síria, ao contrário, forças militares americanas e russas estão em operação. A Turquia, um país membro da OTAN, acusou a Rússia de violar seu espaço aéreo duas vezes, e a OTAN emitiu comunicado expressando sua preocupação e compromisso com a proteção da Turquia. Há, também, como notamos, operações turcas, embora limitadas, contra os curdos na Síria, e mais recentemente, aviões da França (outro membro da OTAN). A situação na Síria é, portanto, inusitada e extremamente precária. De uma hora para outra, o impensável poderá ocorrer, e todas as partes do conflito, especialmente os americanos, russos e turcos, devem ter isso em mente e coordenar suas ações para evitar um processo indesejável de escalação. Essa é, seguramente, a grande diferença entre a guerra civil internacionalizada da Síria e a da Espanha na década de 30.