Insegurança alimentar na crise do coronavirus
É de conhecimento comum que o problema da fome hoje no mundo não se relaciona apenas à ausência ou à baixa produção de alimentos: atualmente, já se produz mais alimento do que a demanda global. Nesse sentido, aplica-se o conceito de segurança alimentar e nutricional que, segundo a FAO, significa que as pessoas podem produzir suficientes alimentos, ou comprá-los, para satisfazer suas necessidades diárias. Num contexto de pandemia de COVID-19, no qual os índices de fome ameaçam aumentar, a emergência da insegurança alimentar surge como uma das consequências diretas do avanço da doença pelo globo.
Os declínios na atividade econômica, afetando inclusive a produção do agronegócio, provavelmente diminuirão os orçamentos governamentais e das famílias, limitando o acesso aos alimentos. A situação alimentar, diretamente afetada pela crise na economia, pode continuar a piorar, no entanto, a magnitude das consequências ainda não é de fato conhecida. Algumas estimativas já preveem que o número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar pode duplicar devido à pandemia, passando de 135 milhões de pessoas no final de 2019 para 265 milhões no fim desse ano. O dado é do Relatório Global de Crise Alimentar 2020 (RGCA), publicado pelo Programa Mundial de Alimentação (PMA) e pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
É importante salientar que a Classificação de Fase Integrada de Segurança Alimentar (IPC) leva em conta certos padrões internacionais, incluindo níveis de consumo alimentar, mudanças nos meios de subsistência, estado nutricional e mortalidade, e os combina com vários fatores relativos (disponibilidade de alimentos, acesso, utilização e estabilidade e vulnerabilidade e riscos) analisados em contextos locais. O nível de severidade do problema pode ser distinto em cinco fases: (1) Mínimo / Nenhum, (2) Estressado, (3) Crise, (4) Emergência, (5) Catástrofe / Fome. Ademais, cabe pontuar que existem alguns fatores que podem provocar a insegurança alimentar: conflitos e insegurança; choques econômicos e de saúde; alterações climáticas; pragas; e deslocamentos. Com o surto atual de coronavírus, a combinação desses fatores agrava ainda mais esse panorama nas regiões mais afetadas do globo.
Especificamente em relação ao quadro pandêmico, o relatório traz três abordagens importantes para entendermos a correlação entre a doença e a segurança alimentar, citando os impactos: na saúde e na nutrição, na disponibilidade de alimentos e no acesso à comida. Nesse sentido, uma série de fatos são mencionados de forma a reiterar tal relação. Em geral, pessoas em crise alimentar apresentam taxas mais baixas de condições de saúde, incluindo doenças não transmissíveis e desnutrição (deficiências agudas e crônicas de micronutrientes), que enfraquecem o sistema imunológico e aumentam o risco de pessoas que desenvolvem sintomas graves de COVID-19.
No tangente ao acesso e disponibilidade, o estudo aponta que as restrições de movimento necessárias para conter a propagação do vírus interromperam o transporte e o processamento de alimentos e outros bens, aumentando os prazos de entrega e reduzindo a obtenção até dos itens alimentares mais básicos. Diante dos fatores econômicos complexos, o relatório enfatiza o aumento do desemprego e do subemprego e a redução drástica do poder de compra das pessoas. Por sua vez, com o poder de compra das famílias reduzido, há um grande potencial para o declínio na demanda do consumidor, especialmente por produtos de maior valor e alimentos de maior valor nutricional.
Cabe mencionar ainda que, de maneira geral, os pequenos estados insulares em desenvolvimento (SIDS) e países exportadores de petróleo podem ser severamente afetados no tocante à segurança alimentar. Considerando que esses estados são importantes importadores de alimentos, com populações dependentes de rendimentos de remessas e turismo, duramente prejudicados na recessão econômica causada pela pandemia, verifica-se uma tendência a um quadro de instabilidade alimentar e nutricional.
Atualmente, no mundo, das cerca de 135 milhões de pessoas que vivem em risco de fome, e que por consequência são mais vulneráveis ao COVID-19, 73 milhões são do continente africano e aproximadamente 43 milhões localizam-se no Oriente Médio e na Ásia.
O continente africano, além de enfrentar as implicações na saúde ocasionadas pelo vírus, encara esse inimigo histórico que aflige vários de seus países. Assim como alguns territórios no Oriente Médio e na Ásia, muitas comunidades africanas sofrem constantemente com a redução de financiamento para programas de ajuda, que fora realocado para iniciativas específicas de combate ao COVID-19, e com as políticas de isolamento e distanciamento social, que limitaram a disponibilidade de mão de obra agrícola e contribuíram para o aumento dos preços dos alimentos, a exemplo da Uganda, Quênia e Nigéria onde o preço de alimentos básicos (como o arroz) atingiu aumento recorde.
Os surtos de patologias, nesses locais, são agravados pela falta de saneamento. Ademais, países como Nigéria e República Democrática do Congo enfrentam conflitos armados há anos. Neste último, 15 milhões de pessoas vivem em estado de insegurança alimentar aguda e ainda correm o risco de ressurgimento do vírus Ebola. No leste do continente, uma infestação de gafanhotos do deserto ameaça os recursos de subsistência da população rural.
No Oriente Médio, o Iêmen passa pela pior crise humanitária do mundo, com 15,9 milhões, mais da metade da população, em situação de crise. A região está na fase 5 da ICP, segundo o relatório já mencionado, alcançando o nível de catástrofe. No entanto, o número de pessoas com insegurança alimentar aguda deve ultrapassar 17 milhões, já que, de acordo com o GRFC 2020, os efeitos combinados do conflito, da crise macroeconômica, dos choques climáticos, e das pestes na lavoura, provavelmente levarão a níveis crescentes de insegurança alimentar em 2020.
Já no Afeganistão, as secas nas áreas rurais e a guerra estendida resultaram em 11,3 milhões de pessoas também na fase 3 da ICP. De janeiro a março deste ano, mais de 138.000 refugiados, vindos do Irã e do Paquistão, retornaram ao país, constrangendo o sistema alimentar afegão. Além disso, o Paquistão é o país asiático com maior índice de insegurança alimentar aguda, com 3,1 milhões de habitantes em crise.
Apesar do foco principal de resposta à crise ser no campo da saúde, a segurança alimentar das regiões vulneráveis deve também ser priorizada, principalmente num momento como esse, no qual as cadeias de fornecimento estão comprometidas. De acordo com a FAO, há 135 milhões de pessoas em insegurança alimentar aguda, isso significa que essas pessoas são extremamente vulneráveis e que mais um choque pode aproximá-las da fome.
As ações concretas de enfrentamento que vêm sendo tomadas em relação a essa situação de fome generalizada visam principalmente a criar um ambiente no qual os produtores locais sejam capazes de produzir e transportar sua produção apesar das adversidades. Os governos africanos definiram medidas de estímulo para mitigar os impactos econômicos nacionais e regionais do COVID-19, enquanto a União Europeia se comprometeu a fornecer uma ajuda de €105 milhões para o Chifre da África; desse total, a Somália e a Etiópia dividirão €90 milhões, enquanto o Quênia receberá €15 milhões e o Djibuti receberá €500 mil. O dinheiro se destinará a apoiar as unidades de saúde com o controle da epidemia como uma das principais prioridades, além de fornecer assistência aos agricultores para ajudar a manter a produção de alimentos durante a crise e atender às necessidades básicas de refugiados e pessoas deslocadas internamente. Ademais, o Banco Mundial aprovou US$137,5 milhões para a Somália para ajudar o país a lidar com suas múltiplas crises.
A ONU também está trabalhando para evitar crises duplas e sua resposta prioriza países que já enfrentam crises alimentares, para assegurar o objetivo 2 dos ODS: Fome Zero. Em 25 de março, o sistema da ONU lançou um apelo humanitário consolidado sob o qual a FAO solicitou US$110 milhões a doadores para proteger a segurança alimentar de populações rurais vulneráveis. Algumas outras medidas da organização incluem ainda a melhora da coleta e a análise de dados para informar a tomada de decisões, estabilizar a renda e o acesso aos alimentos, além de preservar os meios de subsistência; o aumento do envolvimento com governos, estimulando a expansão e criação de esquemas de proteção social; e a garantia da continuidade da cadeia de suprimento de alimentos.
Em suma, para que o avanço da crise da fome seja impedido no contexto da pandemia de COVID-19, os esforços coletivos devem seguir um plano de ação que se adapte às necessidades mais urgentes de cada país, pois, somente através de uma ação coletiva coordenada de forma inteligente, as consequências de longo prazo e os efeitos colaterais nocivos manifestados serão minimizados.